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ARTIGO. Ricardo Ritzel avança sobre a história de um invencível general do Rio Grande: Gumersindo Saraiva

O estrategista que abalou a República

Por RICARDO RITZEL (*)

Gumersindo Saraiva é considerado um dos maiores estrategistas militares do mundo (Foto acervo Museo Nacional – Uruguay)

Gumersindo Saraiva foi o grande líder militar da Revolução de 1893. Tanto que suas estratégias e táticas de combate são estudadas até hoje nas principais academias militares do mundo. Inclusive na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército Brasileiro (ECEME).

Suas táticas de combate foram inspiradas nas guerrilhas “montoneras” charruas, caracterizadas pelos movimentos constantes e ligeiros da cavalaria. Sua estratégia foi lapidada nas revoluções, patriadas e refregas uruguaias de que participou.

Seu comando era nato, duro, às vezes soberbo, sempre imperioso. Típico dos caudilhos sulinos do século XIX. Foi um general “à la gaúcha”. Ia junto, na frente de sua tropa, mostrando como fazer o que pedia e ordenava. E com uma coragem incomum.

Era idolatrado pelos seus subordinados por este comportamento. Em sua maioria, gaúchos simples, oriundos da zona rural do Rio Grande do Sul e Uruguai, que o viam como um igual. O melhor deles, exatamente por esta sua maneira de ser e viver a vida. Era, antes de tudo, um condutor de homens.

E fez isto por quase 3.000 quilômetros em uma das maiores marchas militares do mundo, passando pelos três estados do Sul e, por pouco, muito pouco, não invadindo São Paulo e Rio de Janeiro.

Gumersindo começou a revolução como apenas mais um tenente-coronel do Exército Libertador, entre tantos outros. Porém, pouco a pouco, de combate em combate, tanto seus aliados como inimigos começaram a perceber que aquele comandante praticava uma complexa estratégia militar, sempre aliada com ardilosos planos táticos.

Sua gente quase sempre derrotava, ao natural, forças com significativa superioridade em todos os quesitos militares. E quando a derrota era inevitável, escapavam por entre os dedos dos governistas como fantasmas. Simplesmente sumiam pelos rincões que conheciam como a palma da mão.

Sua guerrilha era fracionada, atacava e dispersava. Fazia o inimigo correr atrás, cansar, e lutar onde não esperava. Depois, bombardeava com falsas informações a inteligência do governo e, surpreendentemente, atacava uma posição bem diferente.

Na guerra de movimentos contra tropas muito superiores em homens e armamentos, Saraiva abria espaços, atacava em várias frentes e com pequenos piquetes. O objetivo era quebrar a resistência do inimigo e separá-lo. Depois, reagrupava sua gente e, com o grosso da tropa, atacava com força brutal o ponto mais frágil do adversário. E assim sucessivamente até a rendição incondicional do rival ou sua debandada generalizada.

Saraiva conduziu homens e fez a guerra por quase 3 mil quilômetros em uma das maiores marchas militares do mundo (Arquivo Museu Histórico da Lapa SC)

Para explicar isto, primeiro temos que ter consciência que Gumersindo conhecia todos os caminhos e atalhos do Rio Grande do Sul. Era um experiente tropeiro desses pagos. Depois, escolhia com quem lutar e onde. Literalmente, não entrava em luta para perder.

E quando isto não era possível, construía rapidamente estratégias que inferiorizavam a força do inimigo, além de montar armadilhas táticas que tiravam os soldados castilhistas de sua zona de conforto e os deixavam a mercê das brutais cargas da cavalaria rebelde. Tornou-se famoso por isto. E temido!

Um exemplo deste apurado senso estratégico foi presenciado nas margens do Arroio Inhanduí (Alegrete), em 3 de maio de 1893, na primeira grande batalha da revolução, com a participação de mais de 12 mil combatentes e uma superioridade decisiva em armamentos e munição por parte dos legalistas.

Na verdade, a luta começou no entardecer do dia anterior quando as vanguardas das duas forças se encontraram na Estância da Palma, trocaram alguns tiros e tomaram posições para lutar no amanhecer. Nesta busca por posições mais vantajosas, os federalistas saíram perdendo, ficando em um terreno impróprio para a atuação de sua força mais mortífera, a cavalaria.

E foi aí que o senso estratégico e tático de Gumersindo fez a diferença. Ele acende várias fogueiras e deixa um piquete comandado pelo coronel Paim como isca para os governistas.

Pouco antes da 9 horas da manhã do dia 3, a Divisão do Norte toma a iniciativa e ataca a posição de Paim, que sai em debandada, levando junto a cavalaria inimiga para um local mais apropriado para os lanceiros de Aparício Saraiva guerrearem sem preocupação com a infantaria e artilharia inimiga. E foi isto que aconteceu.

Depois, quando os castilhistas utilizam seu poder de fogo e avançam para margem direita do Inhanduí, onde se entrincheiram, o coronel Saraiva percebe rapidamente que o ponto mais crítico da defesa maragata era flanco direito revolucionário. E, sem demora, toma o rumo de uma coxilha próxima onde está o comandante maior federalista, general Joca Tavares, e seu Estado-Maior.

Chegando lá, e sem rodeios e cumprimentos, aponta exatamente para ala direita da linha de frente e avisa que ali mesmo que irá atacar.

Tavares, que era oficial experiente e ainda veterano da Guerra do Paraguai, e o general Salgado, um brilhante militar de carreira, se assombraram com aquele gaúcho. Era exatamente o ponto que eles discutiam como o mais vulnerável e de mais difícil defesa, mais ainda não haviam chegado a nenhuma conclusão.

Gumersindo atacou com sua gente intrepidamente gritando seu nome. A luta durou o dia todo com ataques continuados dos rebeldes. Os governistas se desesperam na defesa.

Na tardinha, com a chegada de Hipólito Ribeiro e o grosso da tropa legalista, a situação melhorou um pouco. Com a chegada da noite, somente tiros esparsos marcavam a posição de cada lado da peleia.

Os federalistas não venceram a batalha, mas também não perderam. No outro dia, ao amanhecer, sob as ordens do general Tavares e a discordância de Gumersindo, partiram em direção ao exílio uruguaio por absoluta falta de armamento, munição e cavalhada em bom estado.

Novamente Gumersindo Saraiva vai contra as ordens de seu chefe maior e decide ficar no Brasil com os 400 guerreiros de sua coluna, mais alguns voluntários e outros combatentes escolhidos a dedo para fazerem um intensa guerrilha e manter viva a chama revolucionária no Rio Grande do Sul.

A partir daí, a região da Campanha gaúcha se tornou um local tremendamente inóspito e perigoso para qualquer apoiador do governo de Julio de Castilhos.

De uma hora para outra, eles apareciam nos arredores de uma cidade pouco guarnecida, faziam alguma pilhagem e logo desapareciam na escuridão da noite. Depois que repousavam durante o dia nas matas fechadas que cresciam ao longo dos rios, reapareciam em algum outro lugar mais surpreendente ainda”, conta John Chasteen, em seu livro “Fronteira Rebelde”, já consagrado como um clássico sobre a Revolução de 93.

Coluna Saraiva churrasqueando pouco antes do Combate do Serro do Ouro, hoje Santa Margarida (Acervo Museu Histórico de Bagé)

Conta a lenda que Gumersindo estava em todos os lugares e nenhum ao mesmo tempo, tamanha a mobilidade de sua gente.

Ficaram célebres também as armadilhas que atraiam os inimigos para direções praticamente opostas que tomava depois de um ataque. Para isto, ele reservava um piquete com cavalos rápidos e descansados que carregavam arbustos e galhos para levantar uma imensa nuvem de poeira para um determinado lado. Depois de atrair a atenção dos inimigos, se dispersavam e sumiam. Enquanto isto, Gumersindo e sua coluna tomavam outra direção. Desapareciam também.

Outro exemplo do apurado senso tático de Saraiva acontece logo após a invasão da cidade de São Sepé, quando começa a ser perseguida de muito perto pela força do general Telles.

Chegando na região da Serrilhada, Gumersindo aplica um ardil clássico das montoneras charruas: envia Aparício comandando uma pequena tropa de cavalarianos para retaguarda, que dá combate encarniçado aos inimigos.  E, em um determinado momento da luta, promove uma debandada que causa uma falsa impressão de vitória aos adversários.

Quando seus opositores saem em perseguirão aos rebeldes para trucidá-los e separam a cavalaria do grosso da tropa, a armadilha está pronta para ser posta em prática.

Toda a cavalaria maragata os está esperando atrás de uma coxilha e, com uma inversão de manobra, promovem um contrataque devastador e mortal nos cavalarianos do general castilhista. Depois, com superioridade, tratam de dar combate para o restante da tropa inimiga, já ressentida e com moral baixa pelo destino de seus irmãos de armas.

Enfim, dividiram um inimigo superior e, depois de algumas manobras de cavalaria, promoveram dois combates com vantagem de homens e armas. Simples, mas também genial!

“Foi uma chacina”, testemunharam unanimemente os soldados que sobreviveram ao combate. Tanto de um lado, como do outro.

Gomes Carneiro fez uma obstinada resistência a Coluna Saraiva na cidade da Lapa e salvou a incipiente República brasileira (Foto Museu Histórico da Lapa – SC)

Logo depois, Gumersindo foi promovido a general e a lenda de invencível se espalhou por todo pampa.

Foi neste momento que ele também toma ciência que oficiais da Marinha monarquistas haviam se insubordinado contra a ditadura de Floriano Peixoto e toma o rumo dos Estados de Santa Catarina e Paraná para levar a revolução a outros pagos. E, quem sabe, tomar o Rio de Janeiro e derrubar o governo brasileiro.

E é unânime também entre historiadores e memorialistas que só não chegou à capital federal pela obstinada, para não dizer suicida, resistência de Gomes Carneiro na cidade paranaense da Lapa, que deixou sua coluna imóvel por quase um mês.

Exatamente o tempo que o presidente brasileiro, Floriano Peixoto, necessitava para realocar suas forças para fronteira paulista e impedir o avanço dos revolucionários gaúchos com um grande contingente, armamento moderno, posições fortificadas e farta munição.

Conta a história que a decisão de Saraiva de tomar a Lapa a qualquer custo foi questionada até mesmo por seus coronéis, que contra-argumentavam que um simples contorno da pequena cidade paranaense seria mais lógico e sem perda de tempo para os objetivos da revolução.

A resposta de Gumersindo tirou todas as dúvidas de seus subordinados e, mais uma vez, demonstrou a estratégia superior do mais famoso general maragato:

– “Contornando a Lapa, deixamos uma força aguerrida e bem municiada em nossa retaguarda, além da Divisão do Norte que nos persegue desde o Rio Grande. A nossa frente, certamente teremos as melhores tropas de Floriano e todo armamento e munição que eles podem proporcionar. Ficaremos encurralados em qualquer rincão paulista”, concluiu.

Não houve mais perguntas.

Porém, na volta ao Rio Grande do Sul em busca da fronteira uruguaia não foi exatamente um passeio. Bem pelo contrário. Foi o inferno na terra para os revolucionários gaúchos. A perseguição das tropas federais foi implacável, ainda mais em terrenos que não estavam acostumados e também impediam o uso de sua maior e mais valiosa arma: a cavalaria.

Assim, Gumersindo dividiu sua coluna em três. Uma sob seu comando, outra com Aparício na chefia e a terceira, que levava peças de artilharia, sob a responsabilidade do coronel Juca Tigre. Neste momento, eles tinham, literalmente, um inimigo fungando em suas costas e terrenos montanhosos, com vegetação cerrada e muita floresta pela frente.

Somente Gumersindo e Aparício conseguiram chegar ao Rio Grande do Sul. Juca Tigre e sua gente foram fustigados ao extremo, os obrigando a se refugiarem no Paraguai.

Aparício e Gumersindo fizeram a junção de suas forças perto de Passo Fundo e desfilaram na cidade com suas roupas completamente em frangalhos, depois de uma marcha de mais de dois mil e quinhentos quilômetros. Uma façanha militar só realizada muito tempo depois por Luis Carlos Prestes e Mao-Tsé Tung.

Mas não é somente por isto que o general maragato é considerado um gênio militar imbatível. Outro exemplo de sua criatividade em combate é a solução de um problema tático considerado insolúvel até mesmo por Napoleão Bonaparte: o de como a cavalaria poderia romper os quadrados de infantaria, quando os infantes se mantém firmes, de baioneta calada e sempre preenchendo as lacunas que vão se abrindo durante a carga.

Quando as tropas legalistas de Julio de Castilhos começaram a utilizar este recurso contra as famosas cargas da cavalaria maragata, Saraiva surpreendeu seus inimigos colocando dois cavaleiros alguns metros à frente de seus cavalarianos, levando um laço de couro rente ao solo e, na hora certa, esticando-o até a altura da cintura dos integrantes do quadrado.

O golpe levava literalmente de arrasto o sistema defensivo, rompendo o quadrado militar e deixando os infantes ao alcance das lanças e espadas do restante da tropa rebelde.

E foi isto que aconteceu na Batalha do Pulador, logo depois dos rebeldes saírem de Passo Fundo na volta ao Rio Grande do Sul.

Conta a história que os legalistas, em números de homens e armas muito superiores aos revolucionários, foram derrotados por este engenhoso recurso bélico e ainda viram seus infantes sendo, literalmente, laçados no campo de batalha pelos soldados de Saraiva.

O senador Pinheiro Machado, comandante supremo e idealizador da Divisão do Norte, ao ver o corpo do lendário general, exclamou: – “Parece mentira que esse trompeta chegou a estremecer a República! (Foto Museu Julio de Castilhos)

Uma derrota contundente e desmoralizante que acionou a contrapropaganda de Castilhos. Nos jornais governamentais, o resultado do confronto foi um empate técnico.

E, logo depois, em 10 de agosto de 1894, quando Gumersindo chega aos campos do Carovi e é atingido mortalmente por dois tiros (um no pulmão esquerdo e outro no braço direito), suas últimas ordens levam o grosso do Exército Libertador para segurança da fronteira argentina, confirmando mais uma vez o seu apurado senso militar.

Que organizem la marcha para la frontera. Torquato em la retaguardia. Apáricio, tenga mucho cuidado com su lado izquierdo”, ordenou para seu Estado-Maior deitado de uma maca improvisada para que recebesse os primeiros cuidados médicos.

Com esta decisão, dos quase seis mil combatentes federalistas, cerca de cinco mil conseguiram chegar vivos e em segurança a fronteira argentina.

Depois, o corpo do general foi desenterrado pela Divisão do Norte no Cemitério Santo Antonio dos Capuchinhos, retalhado e atirado nu na estrada de Itacurubi para que a soldadesca pica-pau perdesse o medo que tinham do caudilho maragato e levantassem a moral perdida.

Foi neste momento que o senador Pinheiro Machado, ao ver o corpo do lendário general, exclamou:

–  “Parece mentira que esse trompeta chegou a estremecer a República!”, exclamou!

E ele tinha razão. Mas aquele trompeta (**) chegou a nós e aos nossos dias como um dos maiores generais gaúchos. Possivelmente o mais invencível de todos. Certamente o melhor estrategista e tático entre outros tantos guerreiros lendários do Rio Grande do Sul!

(*) RICARDO RITZEL é jornalista e cineasta. Apaixonado pela história gaúcha é roteirista e diretor do curta-metragem “Gumersindo Saraiva – A última Batalha”. Também é diretor de duas outras obras audiovisuais históricas: “5665 – Destino Phillipson”, e “Bozzano – Tempos de Guerrra”. Ricardo Ritzel escreve neste site aos sábados.

(**) “Trompeta”, no Dicionário da Língua Portuguesa é  pessoa ruim, sem vergonha, desmancha prazeres.

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3 Comentários

  1. Errata: A segunda foto deste texto, onde aparece um oficial maragato à cavalo, não é de Gumersindo Saraiva. Na verdade, o personagem da imagem é o comandante federalista Prestes Guimarães. Minhas desculpas pela falha!

  2. Bom como de costume. Uma ressalva. ‘Tanto que suas estratégias e táticas de combate são estudadas até hoje nas principais academias militares do mundo. Inclusive na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército Brasileiro (ECEME).’ Qual a fonte desta afirmação?

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