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Segunda Guerra – por Orlando Fonseca

Quando lemos sobre a luta que o médico sanitarista Oswaldo Cruz empreendeu, no início do século passado, em um Brasil recém republicano, ficamos perplexos diante da necessidade de produzir uma verdadeira batalha para realizar vacinação em massa, contra um surto de varíola. Mas nos conformamos, afinal isso se deu em 1900 e antigamente, a imensa maioria do povo era analfabeta, mesmo entre os mais abastados (muitos abestados também, que isso o Brasil produz com abundância).

Agora, em pleno século 21, às vésperas de adentrarmos a terceira década, é de se ficar, no mínimo, estupefacto, quando se observa que, outra vez, retorna aquela antiga pendenga, diante da necessidade de vacinação obrigatória contra o coronavírus. E mais perturbados ficamos ao observar que a reação parte da maior autoridade do país (maior apenas em função do posto que ocupa).

Em 1904, viviam-se os primeiros tempos pós-império, e as disputas pelo discurso das liberdades individuais era ferrenho (basta lembrar que a decisão sobre o regime republicano ou federalista deu em uma revolução sangrenta). Vai daí que, diante de uma epidemia que se alastrava pela antiga capital, Rio de Janeiro, o presidente, orientado por Oswaldo Cruz, encaminhou para o Congresso a regulamentação de uma lei para a vacinação obrigatória, vigente desde o regime imperial (1837).

Preste atenção, a aprovação daquela lei marca o início da vacinação obrigatória no país (com atualizações da legislação ao longo dos anos subsequentes). Apenas os indivíduos que comprovassem ser vacinados conseguiriam contratos de trabalho, matrículas em escolas, certidões de casamento, autorização para viagens (aliás, o que pode ser adotado no caso atual).

Não sei se vocês sabem, mas o nome “vacina” é este porque tem relação com vaca – isso mesmo, o animal bovino, do gado vacum. Os procedimentos que levavam à produção do medicamento de imunização consistiam em inoculação de um líquido oriundo de pústulas de vaca doente. Disso é que decorre toda a construção do imaginário popular contra tal coisa nojenta sendo injetada, com a ordem do governo, até mesmo em crianças.

O vulgo chegou mesmo a criar a ideia de que os tratados com tal medicamento começavam a desenvolver fisionomia bovina. Não sei se foi daí que o Zé Ramalho tirou a ideia de descrever a condição do brasileiro como “vida de gado”; quero crer que as razões são outras.

O certo é que, em novembro de 1904, criou-se uma tal Liga Contra a Vacinação Obrigatória, os quais produziram uma reação popular, conhecida como a Revolta da Vacina. Houve uma verdadeira guerra de pelotões da polícia e do exército contra bandos de revoltosos.

Para piorar as coisas, a questão da vacina foi politizada pelos diversos grupos descontentes, uns com saudade da monarquia, outros críticos dos rumos do republicanismo. Até mesmo Cadetes da Escola Militar da Praia Vermelha enfrentaram tropas governamentais.

O microrganismo originador da varíola, que não tinha nada a ver com isso, aproveitou a ocasião para se disseminar à vontade. Muito parecido com o que estamos observando hoje. O negacionismo, fenômeno antigo com roupagem nova, leva multidões às praias, aos bares noturnos, à recusa em uso de máscaras (mesmo entre as autoridades) e distanciamento social.

Para aumentar esta piora, há os que atribuem ideologia ao coronavírus e sua manifestação primária na China, um país comunista, veja só, rejeitando mesmo a vacina chinesa (uma das mais adiantadas nas fases de experimentação, com comprovação científica).

A ignorância é uma doença autoimune, que ataca o cérebro. E a vacina já vem sendo criada há séculos: trata-se do conhecimento. Mas não adianta nada saber que existe, é preciso tomar. Para certos casos, tomar conhecimento uma vez é suficiente. Há situações mais complexas que exigem várias doses. Minha expectativa é que não seja preciso uma segunda guerra, no Brasil, contra uma confederação de negacionistas contra a obrigatoriedade da vacina.

(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

Observação do editor: sem autoria determinada, a arte que ilustra esta crônica é um conjunto de ilustrações que retratam a “Revolta da Vacina”, no início do século passado.

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3 Comentários

  1. Se a definição de ‘sábio’ de alguns é o que se apresenta, prefiro continuar ignorante. Pode chamar de negacionista também. E de egoísta. Porque parece que um fato importante está sendo ignorado por alguns. Todos têm direito a opinião. Direito a ser ouvido é outra história (e ‘trocar de canal’ nunca foi tão fácil). Ser levado em consideração na tomada de decisão e/ou formação de opinião mais raro ainda. O que traz um problema. Muitas vezes quem é ouvido é um piá do Youtube. Ou um artista que mal tem o segundo grau. Informam-se e formam-se pelo que sai na grande mídia. Ou seja, informação ‘fast food’ simplificada para vender cliques. Alás, também não é fenômeno novo. Criatura nasce em berço esplêndido. Estuda em escolas particulares. Por problemas cognitivos e/ou falta de disciplina não passa no vestibular da federal (aprovação não diz nada, mas reprovação sim). Filho de peixe grande no mar não se afoga, forma-se numa faculdade particular. É necessário ‘esquentar’ o currículo, papai e mamãe estão ai para isto, curso alhures (até aqui problema nenhum, nenhum juízo de valor). É preciso montar o negócio, abrir escritório (alguns já tem um pronto esperando), genitores de novo bancam a brincadeira, ainda nenhum problema. Dai ocorre a transmutação, ‘filho de peixe grande no mar não se afoga’ metamorfoseia-se em ‘filho de peixe peixinho é’. Sai a julgar a humanidade, bancar o esteio da sociedade, etc. A credibilidade vem da fama, não do mérito. Da mesma maneira que o Youtube.

  2. Situação atual tem quase zero similaridade com a Revolta da Vacina.
    Governo federal, segundo noticiado, já repassou mais de um bilhão de reais à Fiocruz. Parceria com Oxford. Tecnologia é alteração genética de um adenovírus que ataca macacos. Diferente da vacina chinesa que se utiliza de vírus atenuados. Qual a efetividade da vacina, ou seja, qual a proporção dos que tomam as duas vacinas e ficam imunizados? Não se sabe. Quanto tempo dura a imunização? Não se sabe. Quantas doses são necessárias para produzir imunização? Não se sabe. Se nas duas vacinas forem necessárias duas doses e algum imbecil toma uma dose de uma vacina e o reforço de outra, o que acontece? Não se sabe.
    Problema da vacina chinesa. Doria andou comprando adiantado. Fez a aposta dele. Agora quer que o governo federal pague a conta. Ideologia? Por que motivo os defensores da ditatura de um partido defendem tanto a dita cuja? Não sabem viver sem polarização?
    O que se vê é um bando de coletivistas imbecis querendo utilizar o Estado para impor comportamentos à população. Não querem resolver problema nenhum porque com suas atitudes, mugindo ‘negacionismo’ a todo instante por exemplo, só fazem aumentar a resistência. Polemicas artificiais com fins eleitoreiros aumentando problemas, é tudo o que se precisa.

  3. Kuakuakuakua! Para começo de conversa, não existe alguém mais ‘gado’ do que um militante de esquerda. Segundo, para ‘desgastar’ há que se ter credibilidade, coisa que os defensores da inocência do Molusco e de Dilma, a humilde e capaz, não tem. Terceiro, é só sair na rua e perguntar a 10 desconhecidos cinco confusões do governo federal em 2019; é quase garantido que não vão lembrar de uma. Dependendo da ‘bolha’ de cada um, óbvio. E não é nada novo, é o velho problema da indução.

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