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O tal de quociente – por Orlando Fonseca

Para falar de ideologia, Cazuza declarou em uma canção “o meu partido é um coração partido”. Ao dar o tratamento existencialista para o tema, o uso de uma expressão política (partido) trazia na polissemia do termo empregado o paradoxo da mistura de razão e emoção. Se bem que é possível afirmar não ser tão claro o limite entre essas duas, falando em amor ou política. Lembrei disso, para comentar sobre algo que se tornou muito comum neste período eleitoral, abrangendo a campanha e o resultado das urnas: quociente eleitoral. Em nossa cidade, este ano, teria passado despercebido, não fossem três situações inusitadas que viraram manchete, e não apenas nos jornais e noticiosos locais.

Apurados os votos, duas candidatas, de partidos distintos, alcançaram votações expressivas, e uma delas, Alice Carvalho, chegou ao número de 3.371. No entanto, nenhuma delas foi eleita, uma vez que foram pegas pelo ponto de corte do supracitado quociente eleitoral. Enquanto isso, um candidato que conseguiu a façanha de não obter nenhum voto – estava doente, e não pôde sair de casa – conseguiu, pelo mesmo referido fator, ficar como suplente dentre os candidatos de seu partido. Olhando friamente, e sem qualquer critério esse quadro, é claro que encontramos algo que parece uma bizarrice do sistema. Só que esse não é o primeiro caso, e sequer foi uma exclusividade de Santa Maria.

Embora a indignação que alguns expressaram nas redes sociais, tal resultado não foi injusto, também não se pode dizer que o sistema deva ser modificado para evitar situações como essa. Daí a mistura de emoção e razão nas críticas. Tal situação não é resultado apenas porque a lei estabelece assim, há um sentido relativo à democracia que transcende a frieza dos números, e é a atenção a esse aspecto que faz toda a diferença. Por certo, ajustes podem ser feitos, mas criar uma fórmula mágica para privilegiar determinados resultados seria um perigoso casuísmo, pois teria de abolir o paradigma das eleições proporcionais.

Talvez os leitores (e eleitores) não tenham se dado conta de que se chama Majoritária a eleição para o cargo de prefeito, justamente porque vence o que alcança a maioria (a partir de 50% + 1) dos votos. E são classificadas como Proporcionais as que se referem aos cargos de vereador, pois se trata de uma divisão do quantitativo da votação alcançada pelos partidos. Daí o tal do quociente, ou seja, a divisão dos votos válidos pelo número de cadeiras da Câmara, em um ranking dentro dos partidos concorrentes. E a razão está na concepção de uma Democracia representativa: ninguém deve (ou pode) ser representante de si mesmo dentre os candidatos. As candidaturas devem sintetizar um conjunto de ideias, princípios e projetos, o que carece de uma agremiação que reúna estes valores e os sintetize em seus programas.

Pelos programas é possível saber em que projeto se está votando – para além da pessoa. Sim, sempre escolhemos uma pessoa, mas precisamos realizar a escolha em seu valor simbólico – para citar Goethe: vendo o universal no particular. Não é uma invenção da Constituição de 1988, mesmo ano do lançamento da canção de Cazuza. Na Grécia, berço da democracia, nos séculos IV-V a. C., o voto era majoritário na Ágora, mas só votavam homens livres (era uma sociedade escravocrata); não podiam ser jovens, deviam ter acima de 35 anos; mulheres nem apareciam por lá, pois não tinham voz nem voto. A democracia moderna evoluiu para o sistema atual, em uma vida republicana plena, valorizando a cidadania, sem exclusão. A verdade presente, para que não se repitam distorções como as que vimos aqui, é que os partidos precisam se estruturar melhor. Da mesma forma, o eleitor deve se informar melhor, para votar consciente, equilibrando razão e emoção – eis o melhor quociente.

(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

Nota do editorA imagem que ilustra essa crônica é uma reprodução obtida na internet.

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2 Comentários

  1. Democracia ateniense é tratada (em quase todo lugar) de maneira superficial, idealizada, fora de contexto. Populismo, corrupção, guerra expansionista geralmente ficam de fora. Alás, o requisito não era, salvo melhor juízo, idade de 35 anos, era o treinamento militar e ascendência de pai e mãe atenienses (regra tem exceções).
    Neste contexto alguns americanos já falam que o novo governo tem a missão de ‘promover a democracia no mundo’, como todo governo democrata. No caso ateniense é uma das alegadas causas da Guerra do Peloponeso. O que traz a baila o conceito moderno de ‘Armadilha de Tucidides’. Mas isto é outra história.

  2. Não tem nada de ‘emocional’ na abordagem, o que se vê é a disseminação de informações parciais com o único objetivo de desacreditar o sistema. Emoções só a dos explorados politicamente. Suplente com zero votos só existe porque o partido conseguiu uma vaga. Alás, partido lançou mais de duas dúzias de candidatos, somou mais de 8 mil votos e alcançou o quociente. O dito suplente quase com certeza nunca vai assumir. É o último numa lista bastante longa.

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