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Onda transformadora – por Bianca Zasso

A 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo encerrou ontem e contou com mais de 60 títulos dirigidos por mulheres. Numa curadoria de quase 200 filmes, é uma presença importante. Entre os selecionados, que incluem documentários e ficções, um merece destaque não apenas pela equipe feminina que o conduz, mas pela forma como aborda o seu tema principal: a maternidade. Mar de dentro, primeira aventura em longa-metragem de ficção da diretora Dainara Toffoli (responsável pelo ótimo curta Um Homem Sério, produzido pela Casa de Cinema de Porto Alegre), poderia ser definido como um filme sobre uma mulher que se torna mãe. Porém, há um melhor encaixe se a sinopse for “um filme sobre uma mãe que batalha para não deixar de ser mulher”.

Esta que vos escreve, que adentrou no mundo complexo das mães neste ano insólito de 2020, pede licença para trazer a este texto algumas impressões bem pessoais, que vão além da crítica cinematográfica. Mar de Dentro começa suave, com uma cena dotada até de certa ternura, em uma casa de forró modesta onde Manuela (Monica Iozzi) encontra Beto (Rafael Losso). Logo o espectador descobrirá que eles são colegas de trabalho numa grande agência de publicidade e que em seu romance não cabem rótulos. Sem preocupar-se em explicar como chegaram ao ponto em que se encontram, o roteiro, também assinado por Dainara, já apresenta o primeiro conflito da história. Numa cena com a qual muitas mulheres irão se identificar, Manuela descobre que está grávida. Sem arroubos cênicos, nos vemos diante de uma mulher paralisada por um resultado que, literalmente, irá modificar toda a sua vida.

É interessante que Mar de Dentro faça uma certa brincadeira com o espectador ao apresentar o Beto como um homem livre e apaixonado pelo mar. O estilo aventureiro e conquistador impresso na tela faz pensar que o próximo passo da relação dele com Manu é o fim. Mas logo nos deparamos com um companheiro disposto a encarar o desafio. Optar por um casal protagonista “fora dos padrões”, que não marca casamento ou torna-se tradicional após a descoberta da chegada de um bebê, Mar de Dentro abre a porta para o seu grande momento, que é acompanhar a gestação e os primeiros meses de maternidade de Manuela. Monica Iozzi segura muito bem as pontas, em especial nas cenas que correspondem aos últimos meses de gravidez. Cair no clichê gestual é um risco grande, ainda mais quando a atriz escolhida não passou pela experiência na vida real. No entanto, Iozzi parece ter feito um ótimo laboratório que, aliado a sua formação em artes cênicas, resulta em momentos que equilibram afeto e loucura, talvez as duas palavras-síntese do período pós-parto.

Ao redor de Manuela circulam personagens interessantes, como os pais evangélicos de Beto, mas o roteiro não parece muito interessado em aprofundar essas relações da protagonista, o que não atrapalha em nada o andar da história. Essas breves participações, que incluem as ótimas Magali Biff e Gilda Nomacce, parecem feitas para soarem aéreas, já que na rotina e na cabeça de Manuela só há espaço para uma pessoa: o bebê. Em nenhum momento Mar de Dentro desbanca para a pieguice ou preocupa-se em mostrar uma transformação quase mágica de Manuela. Os desafios do puerpério estão em cada cena sem filtros ou julgamentos. É um filme sobre maternidade que não endeusa essa condição. A dureza e a ternura caminham juntas no trabalho de Dainara, onde a direção de arte é também um personagem, criando uma atmosfera que transmite bem as mudanças sutis, porém potentes de Manuela. Seu rosto ensaiando um sorriso de satisfação ao sair na rua sozinha pela primeira vez após o nascimento do filho é uma das mais bonitas do longa. E vai bater nas mães da plateia com força.

Em pleno 2020, onde uma pandemia tirou um pouco da máscara da tal “magia de ser mãe” para alguns desavisados, um filme que se propõe uma protagonista que não disfarça o quanto cuidar de um bebê é exaustivo e não há mal nenhum em sentir falta do antigo cotidiano, é uma vitória que merece ser comemorada. Em uma sala de cinema lotada, se possível. Que a pandemia passe e nos permita esse prazer, seja com nossos filhos ou sozinhas. É uma onda que nos afoga, mas que também lava a alma para seguirmos em frente. Cansadas, um tanto confusas, mas fortes. Muito fortes.

Mar de Dentro

Direção: Dainara Toffoli

Exibido na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e com previsão de estreia em 2021 nos cinemas

(*) Bianca Zassonascida em 1987, em Santa Maria, é jornalista e especialista em cinema pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Cinéfila desde a infância, começou a atuar na pesquisa em 2009. Suas opiniões e críticas exclusivas estão disponíveis às quintas-feiras.

Observação do Editor: a foto que ilustra este texto é de Divulgação.

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2 Comentários

  1. Não tenho o hábito de assistir filmes nacionais, mas em seu comentário, agrada-se aquele, da mesma forma que eu, tamanha descrição dessa película e do comparativo com a nossa atual rotina. Parabéns, excelente artigo.

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