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O que esperar de um governo indiferente a 160 mil mortos? – por Paulo Pimenta

Recusamos a banalização da morte

A pandemia de covid-19 expõe aos nossos olhos a fratura social deliberadamente ignorada pelo Estado: os pobres, os negros, os desintegrados e agora os idosos mais vulneráveis ao vírus não são cidadãos brasileiros. E como também não se enquadram na categoria de estrangeiros, pois aqui nasceram, são subcidadãos, são párias.

São apenas números. Estatísticas sob nossos olhos anestesiados. Assistimos atônitos aos números da maior catástrofe sanitária da história do Brasil, onde aguardamos temerosos os efeitos de uma possível segunda onda como ocorre neste momento na Europa e nos Estados Unidos: contabilizamos, no último 2 de novembro, 160.104 óbitos desde o início da pandemia. São mais de cinco milhões e quinhentas mil, precisamente 5.544.815 pessoas infectadas.

Os dados vêm das Secretarias Estaduais de Saúde, veiculados pelo consórcio de meios de comunicação. Uma iniciativa das empresas de mídia para se contrapor à política de desinformação do governo Bolsonaro que sonegou dados, atrasou boletins, tirou informações do ar, interrompeu a divulgação dos casos e de mortes e divulgou dados contraditórios. Uma antiga prática fascista para gerar confusão na sociedade e dificultar reações previsíveis e legítimas.

Em nenhum lugar do mundo assistimos ao festival de improvisação, irresponsabilidade e crimes como o que vimos no governo Bolsonaro diante da pandemia de covid-19. Nem nos Estados Unidos de Trump. Não é defensável sob qualquer ponto de vista que um chefe de governo demita dois Ministros da Saúde em menos de sessenta dias, em meio a uma batalha em defesa da saúde pública dos seus cidadãos, quando a pandemia já deixara de ser apenas uma ameaça anunciada e se convertia em contaminação massiva, em altas taxas de letalidade diária, em dor e em luto para a população mais pobre e mais vulnerável.

Depois do negacionismo bisonho, puro e simples, dos passeios sem máscara, da “gripezinha” e do “meu porte atlético capaz de enfrentá-la sem grandes incômodos”, a covid-19 se disseminou com rapidez e alcançou todas as unidades da federação. O Presidente da República abriu então um conflito com o Ministro da Saúde, que entrou em evidência no noticiário para defender a aplicação das recomendações de isolamento social feitas pela OMS. Ignorando a extensão da crise sanitária, o Presidente preferiu aliar-se ao vírus, tratando de removê-lo do caminho.  

As demissões de dois Ministros da Saúde deixaram a sociedade estarrecida. A assunção do general intendente Eduardo Pazuello, aquele que afirmou candidamente que não sabia o que era o SUS, a Ministro interino, não menos. A imediata e indevida ocupação de postos-chave em áreas técnicas no Ministério da Saúde, substituindo servidores de carreira por militares sem qualquer familiaridade com as áreas de saúde pública, não surpreendeu. Foi recebida como consequência natural nessa espiral de absurdos.

O Presidente da República aderiu à prática do charlatanismo raso ao tentar convencer a sociedade a consumir a cloroquina.

Determinou às Forças Armadas a fabricação de um medicamento apontado como ineficaz no combate ao corona vírus pelas autoridades sanitárias e com efeitos colaterais danosos à saúde dos pacientes. A população ignorou o espetáculo patético do chefe do governo fazendo-se passar por camelô de feira para impingir o remédio. Até este momento a sociedade não foi devidamente esclarecida sobre as motivações de tamanho envolvimento pessoal de Jair Bolsonaro na propaganda do medicamento. 

O Dr. Reinaldo Guimarães, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva ao analisar os efeitos da pandemia no Brasil, afirma: “na sucessão de derrotas para a saúde e para a ciência e interrogações que persistem, o presidente da República tem uma enorme reponsabilidade nas derrotas. Ele, no seu isolacionismo, na sua cumplicidade com o vírus fez com que o próprio sistema de saúde se fragmentasse mais do que ele já é fragmentado. O presidente rompeu com os secretários estaduais, militarizou e humilhou o Ministério da Saúde, que é o gestor federal do SUS. A gente não pode dizer que ele é louco, porque os loucos são inimputáveis, e eu acho que em algum momento da história ele será imputado por esse comportamento criminoso que vem tendo desde março deste ano”.

Ainda na mesma entrevista o Dr. Guimarães avalia que o país está bem posicionado, com o Butantã, com o Bio-Manguinhos e com o Programa Nacional de Imunizações do SUS, para enfrentar os desafios da vacina. “Mas não estamos tão bem com a capacidade desse conjunto de instituições funcionar a 100% de sua carga e sua competência em função dos entraves de caráter político, como a gente já está vendo o presidente fazer. O Programa Nacional de Imunização tem uma enorme experiência com logística. Trabalha com 30 mil, 40 mil salas de vacinação nas campanhas nacionais. Sabe fazer isso. Quem pode atrapalhar? Mais uma vez, o Presidente da República”.

Quando Jair Bolsonaro ameaçou privatizar o SUS, como anunciou na última semana de outubro, uma pronta reação da sociedade lhe impôs um recuo. Ainda que tenha sido um recuo tático, o que obriga os setores populares melhor organizados a permanecerem atentos e mobilizados. Porque essa ameaça não é acidental ou gratuita. Ela faz parte da concepção privatista da saúde defendida pelos neoliberais aqui e no mundo.

É evidente, por outro lado, para qualquer observador da pandemia do covid-19 no Brasil que o Sistema Único de Saúde e seus servidores tem sido o principal responsável por salvar vidas e evitar que a catástrofe sanitária alcance proporções ainda maiores. O Presidente da República e o Ministro Paulo Guedes falam em nome da indústria da doença, não concebem e não aceitam o texto constitucional que define a saúde como um direito do cidadão e um dever do Estado.

Para as classes populares o serviço prestado pelo SUS significa o último arrimo, a última defesa, a diferença entre a vida ou a morte de um familiar, um pai, uma mãe, um avô no combate à pandemia. A nossa capacidade de defender a permanência do SUS com seu caráter universal e gratuito, como direito das cidadãs e cidadãos é que definirá o nível de compromisso da sociedade brasileira com os princípios básicos da civilização. E possamos dizer aos nossos filhos que nos recusamos a aceitar a banalização da morte.

(*) Paulo Pimenta é Jornalista e Deputado Federal, presidente estadual do PT/RS e escreve no site às quartas-feiras.

Observação do editor: a imagem (sem autoria determinada), que ilustra este artigo, é uma reprodução da internet.

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