Não pode haver silêncio sobre o 13 de dezembro – Por Paulo Pimenta
Na data, em 1968, foi editado o Ato Institucional nº 5, que ampliou a ditadura
O Ato Institucional no 5 marca profundamente a face das instituições do Estado e da sociedade brasileira, cinquenta e dois anos depois.
Com relação ao AI-5, podemos recuperar a conhecida frase de Joaquim Nabuco sobre a escravidão: “Acabar com a escravidão não basta. É preciso acabar com a obra da escravidão.”
Quatro anos e meio depois de desferir o golpe de estado de 1º de abril de 1964, a coalisão civil-militar que depôs o Presidente eleito João Goulart, ainda no primeiro ano fechou o Congresso, aboliu os Partidos Políticos, interveio em Sindicatos e associações de trabalhadores, cassou mandatos e exonerou ministros nos tribunais.
Logo se afastou de expressivos segmentos sociais, mesmo daqueles que haviam apoiado o golpe na primeira hora. Com o propósito de deter as manifestações do movimento estudantil, particularmente no Rio e em São Paulo e outras capitais do país, mas também as primeiras mobilizações do movimento operário em Osasco e Contagem, os militares recorreram ao seu instrumento preferido: a força.
A decisão tomada pelo alto escalão das Forças Armadas em 13 de dezembro de 1968 foi aprofundar o caráter repressivo do regime e silenciar qualquer voz que se levantasse em oposição. As manifestações contrárias que sobreviviam dentro do Parlamento severamente desfigurado em sua composição pelas cassações e agredido em suas funções institucionais, foram utilizadas como pretexto para o Ato de força.
No 13 de dezembro de 1968 o Marechal Costa e Silva decretou o Ato Institucional no 5. Tratou-se, como se definiu na época, de “um golpe dentro do golpe”, uma aberração jurídica composta por apenas 12 artigos. Que abre anunciando: “São mantidas a Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições Estaduais(…)” (art. 1º) para já na linha seguinte deixar claro que: “O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em Estado de Sítio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República”. (art. 2º)
O texto incorpora em artigos seguintes a expressão “(…) sem as limitações previstas na Constituição” – note-se que a Constituição de 1967 era obra dos próprios militares – como fórmula explícita para anular de fato o anúncio do art. 1º e abrir portas e janelas para o arbítrio dos generais, no topo da hierarquia do Estado que fora tomado pela força das armas e – abaixo deles – os tiranetes de província, os funcionários obscuros, os censores, qualquer personagem dotado de ínfima parcela de poder, no último guichê do serviço público, no último município do país.
Essa monstruosidade jurídica não se esgota em si mesma. Além do impacto imediato destinado a responder a uma situação momentânea de isolamento social e político da ditadura, no final daquele ano turbulento, abre espaço para toda a sorte de arbitrariedades. Legaliza assassinatos e “desaparecimentos”, radicaliza a censura à imprensa e às atividades culturais, institucionaliza a tortura como método de tratamento dos opositores, dissemina silenciosamente, a partir daí, no aparelho de Estado e, por consequência, na sociedade, um conjunto de hábitos e comportamentos duradouros, uma “cultura” de Estado assentada no autoritarismo e no arbítrio.
Essa aberração institucionalizada duraria formalmente por dez anos. Foi derrubada em 1º de janeiro de 1979 pela Emenda Constitucional no 11 assinada pelo quarto ditador, o General Geisel. Formalmente. Os efeitos explícitos foram cedendo sob o combate dos setores sociais que expunham nas ruas seus anseios por uma democracia sem adjetivos.
Os efeitos invisíveis, porém, sedimentados no imperceptível comportamento quotidiano, apesar de serem alvo das preocupações dos setores mais avançados da sociedade, não ocuparam espaço relevante na agenda da democratização.
Seus efeitos permanecem alimentando o mais terrível dos sintomas da doença social que nos aflige: a indiferença. A indiferença que emerge depois de mais de três décadas de exercício democrático, diante das desigualdades sociais, diante da violência quotidiana no espaço familiar e no espaço público. Como se não tivéssemos vivido ao longo de mais de uma década um exitoso processo de desenvolvimento econômico com inclusão social, combate à fome, redução das desigualdades sociais e regionais, promovido pelos governos democrático-populares liderados pelo Partido dos Trabalhadores.
Os efeitos duradouros do autoritarismo herdados de uma cultura escravocrata que nos acompanha desde o desembarque dos colonizadores portugueses, perpetuados ao longo do império, da república oligárquica e, mais recentemente expressa pela ditadura civil-militar (1964/1985), cristalizam no aparato do Estado e disseminam na sociedade a indiferença diante do cidadão ou cidadã que deveria ter o tratamento de um ser, sujeito de direitos. É o que demonstra a condução do Estado brasileiro ao longo da crise sanitária que em menos de um ano já ultrapassa a soma assombrosa de 181 mil mortos.
Aos olhos do Estado, capturado pelo projeto neoliberal, na melhor das hipóteses, cidadãos e cidadãs são vistos apenas como consumidores, eventualmente insatisfeitos.
E no caso das populações pobres e negras das periferias das cidades, ou seja, a maioria dos brasileiros – são objeto da brutalidade do aparato repressivo das forças policiais, militares ou civis. Aos olhos dessas maiorias pobres e marginalizadas de trabalhadores, o Estado brasileiro opera como uma força de ocupação hostil que só se faz presente no ato de cobrar impostos ou por suas vidas em risco permanente.
A cultura autoritária que persiste na sociedade brasileira, alimentada pelo preconceito e pela ignorância, abriu caminho para que as elites conservadoras se utilizassem de um personagem que encarna em sua trajetória, de forma caricatural, as mazelas da prática política brasileira, para fazer frente à possibilidade do retorno das esquerdas ao poder, nas eleições de 2018.
Passados dois anos, a cena que o Brasil presencia neste momento, quando se lançam luzes sobre as aventuras do GSI – Gabinete de Segurança Institucional e da ABIN – Agência Brasileira de Inteligência em defesa da família Bolsonaro, fazendo com que o STF determine que sejam dadas explicações sobre os relatórios produzidos pela Agência para auxiliar a defesa de Flávio, pode ser definida como um “reencontro histórico”.
No Palácio do Planalto se reúnem representantes daquele momento abominável da história brasileira: o general Augusto Heleno, comandante do GSI e ABIN que, quando capitão, foi ajudante de ordens do general Sílvio Frota, aquele que tentou um golpe contra Ernesto Geisel por considerá-lo quase um comunista… e foi demitido em 1977, e Jair Bolsonaro, que foi afastado do Exército em 1998 sob a acusação de planejar atentados contra unidades da corporação, mais tarde um apoiador explícito das milícias.
Como símbolo de que a prática autoritária e manipulatória já tomou conta das entranhas e da rotina deste governo, o Jornal Folha de São Paulo traz a denúncia de que em reunião do Ministério da Saúde, coordenada pelo Ministro General Eduardo Pazuello para debater o Plano Nacional de Vacinação contra a COVID-19, especialistas convidados tiveram seus microfones silenciados e foram impedidos de se manifestar enquanto era apresenta a proposta. Os questionamentos só puderam ser feitos por escrito, e nenhum deles foi respondido pelo Ministro ou equipe. Mas, para a surpresa de todos, os nomes dos pesquisadores presentes na reunião constaram nas assinaturas do documento oficial da proposta remetida ao STF pelo Governo Bolsonaro.
E, como chave de ouro, para poder garantir a sua agenda de retrocessos, Bolsonaro se movimenta para emplacar as Presidências da Câmara dos Deputados e do Senado Federal!
O que estamos assistindo no Brasil é o governo e o Estado brasileiros trilharem o caminho de retorno ao Estado de Exceção, preconizado e praticado pelo AI-5.
Já é hora de darmos consequência aos inúmeros pedidos de impeachment encaminhados à Mesa da Câmara, antes que seja tarde, para a democracia, as liberdades e a vida do povo.
(*) Paulo Pimenta é Jornalista e Deputado Federal, presidente estadual do PT/RS e escreve no site às quartas-feiras.
Observação do editor: a foto (sem autoria determinada) que ilustra este artigo, faz parte do documentário “AI-5 – o dia que não existiu”, do jornalista paulista Paulo Markun.
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