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Saudades aglomeradas – por Bianca Zasso

A colunista e “Corpo Elétrico”, a estreia em longas do diretor Marcelo Caetano

Arte salva. Duas palavras colocadas uma ao lado da outra (e que dizem mais que muitos livros inteiros) resumem uma das muitas faces dessa pandemia. Com o isolamento social, mudamos nossa forma de ver filmes.

Deixamos um pouco de lado as sessões de cinema na sexta, depois do trabalho e a reunião de amigos na sala de casa com pipoca e Netflix para seguirmos solitários com nossos DVDs (sim, eu acredito na mídia física ainda!), plataformas streamings e outros meios (legais ou não) de termos acesso à produções audiovisuais.

E foi durante uma dessas noites pandêmicas que essa colunista que vos escreve realizou uma revisão de um dos longas brasileiros mais tocantes dos últimos anos e que resulta neste texto em crise, que não sabe bem se é crítica ou crônica.

Corpo Elétrico foi lançado em 2017 e marca a estreia em longas-metragens do diretor Marcelo Caetano. Selecionado para o Festival de Roterdã e premiado pela Associação Paulista de Críticos de Artes, o filme acompanha o cotidiano de Elias, um jovem paraibano que trabalha como assistente em uma confecção na cidade de São Paulo. E neste cenário, e também em seu minúsculo apartamento, que o personagem se apresenta sem pressa e sem amarras para o espectador.

Já na cena de abertura, em uma conversa pós-sexo filmada com sinceridade, ele comenta sobre sua ligação com o mar e a característica de nunca “conseguir desligar”. Eis o corpo elétrico do título e também do poema de Walt Whitman que o inspirou. Elias vive uma busca eterna por afeto, alegria, encontro.

Suas aventuras amorosas e sexuais são mostradas na tela sem julgamentos ou arroubos cênicos e é este o detalhe que as torna apaixonantes. Nos sentimos um pouco voyeurs, um pouco participantes dos acontecimentos, mas sempre acolhidos pela delicadeza ácida com que Elias leva seus dias.

O ator Kelner Macêdo parece ter sido talhado para o papel, com seu rosto comum e seus gestos genuínos. Mesmo dominando todas as cenas, o resto do elenco segue seu ritmo, esbanjando naturalidade nos ótimos diálogos criados pelo roteirista Hilton Lacerda, que assina a história com o diretor e Gabriel Domingues.

Como já ficou claro nas linhas acima, Corpo Elétrico não é um filme de invenções visuais. O experimentalismo talvez se faça presente, mesmo assim de forma sutil, nas pequenas informações sobre a vida dos coadjuvantes, que surgem na tela sem grandes pretensões, mas conseguem o carinho de quem os assiste.

A sensação de querer tomar uma cerveja depois do expediente com cada um daqueles trabalhadores, que fazem hora extra, planos de casamento e calculam o tempo no ponto do ônibus em proporções quase idênticas, toma conta muito antes dos créditos finais surgirem.

E por falar em cerveja, um dos únicos experimentos visuais mais, digamos, ousados de Corpo Elétrico se dá no caminho entre a confecção e o bar, onde a turma de Elias vai entrando e saindo do foco da câmera sem grandes explicações. E, por isso mesmo, deixando saudade em quem vislumbra o momento.

Há uma outra tribo frequentada por Elias, formada por drag queens, mostradas tanto na exuberâncias de seus shows como nos bastidores, transformando restos de tecido em pequenos luxos. É com essa outra trupe de amigos que o protagonista encabeça a outra cena exuberante do longa. Montadas em suas motos, maquiadas e vestidas para suas apresentações, elas parecem donas da noite e do mundo.

São estes breves segundos de euforia que movem todos os personagens de Corpo Elétrico. Longe da imagem da juventude que trabalha duro para ter carro zero ou um apartamento descolado, aquela movida por coachs e a tríade “foco, força e fé”, a galera dirigida por Marcelo Caetano se contenta com o pagode no ônibus na volta para casa depois da festa de ano novo ou o flerte com a colega de trabalho. Se isso é certo ou errado, não cabe nem ao filme nem a nós julgarmos.

O diretor não busca a crítica social simples, mesmo que as cenas na confecção coloquem o dedo na ferida dos novos “senhores” que custeiam suas viagens internacionais graças ao trabalho pesado e mal remunerado dos seus empregados. O capitalismo selvagem está no filme, mas não para ser questionado com frases feitas.

Ao final de Corpo Elétrico, muitas são as possibilidades de discussão. Para um crítico, que sai da sala já em busca de papel e caneta para anotar suas opiniões, é daqueles filmes que permite mais de um texto, tamanha a sua diversidade de temas. Há quem questione essa multidão de assuntos como falha, resultando em uma história incompleta.

Fica a dica para se repensar a obsessão de alguns espectadores com histórias com “começo, meio e fim”, já que nem nossa própria existência é hermética a esse ponto. Podemos acabar no meio do caminho e recomeçar depois de destruirmos quase tudo. Mas paralelo aos muitos desejos provocados pelo filme, está a saudade.

Assistir Elias e seus amigos, amantes e afins beberem, dançarem, trocarem abraços, beijos e sorrisos como se não houvesse amanhã ou máscaras, aumenta um pouco a tristeza dessa quarentena. O jeito é transformá-la em esperança. De vacina e de consciência de classe.

Corpo Elétrico

Direção: Marcelo Caetano

Ano: 2017

Disponível na plataforma MUBI

(*) Bianca Zassonascida em 1987, em Santa Maria, é jornalista e especialista em cinema pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Cinéfila desde a infância, começou a atuar na pesquisa em 2009. Suas opiniões e críticas exclusivas estão disponíveis às quintas-feiras.

Observação do Editor: As fotos que ilustram esse texto são de Divulgação.

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2 Comentários

  1. Arte salva? Vá dizer isto para a orquestra do Titanic.
    É a velhice. Mulan foi direto para streaming. Mulher Maravilha 1984 idem. Rede Cinemax nos EUA entrou em recuperação judicial. Na volta da pandemia as relações financeiras entre produtores de conteúdo e distribuidores vai mudar.
    É crônica. Tudo o que confirma e reforça a ideologia, não importa a qualidade, é ‘excepcionalmente bom’. O resto é ignorado.
    No mais é um ‘intelectualismo’ de almanaque. Cinema nacional converge para ser o que nunca deixou de ser. Na grande maioria dos casos sub-mediocre.

  2. Que maravilha de leitura, uma sinopse mais que perfeita “Saudades aglomeradas”, um dia ainda vou ter mais atenção com o cinema nacional. Teus textos estão quase me incentivando. Parabéns Bia.

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