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Trumpismo – por Orlando Fonseca

“Instruir a democracia, reavivar se possível suas crenças, purificar seus costumes, regular seus movimentos, substituir pouco a pouco pela ciência dos negócios sua inexperiência, pelo conhecimento de seus verdadeiros interesses seus instintos cegos; adaptar seu governo aos tempos e aos lugares; modificá-lo de acordo com as circunstâncias e os homens – este é o primeiro dever imposto nos dias de hoje aos que dirigem a sociedade.” (Alexis de Tocqueville)

Preferia estar falando nesta crônica a respeito do verão. Não lembro há quanto tempo não inicio o mês de janeiro – por conseguinte o ano novo – em Santa Maria. Muitas vezes, tanto em texto, quanto em conversas informais, falei do significado existencial e afetivo do meu nome – Orlando – que significa estar à orla, de preferência do Atlântico. Tratei de dizer que, ao menos uma vez por ano, preciso estar à beira mar, que o meu elemento como ser humano vem de lá, que meus ancestrais têm na orla do Atlântico um ponto de encontro primordial das terras ultramarinas com estas plagas tropicais. Meu pai não escolheu este nome por essas razões que arranjei ao longo da vida adulta, professor de Língua Portuguesa e de Literatura, dado a elucubrações fantasiosas. No entanto, me identifico com o este gerúndio definitivo.

Mas o que pretendia dizer mesmo com aquela abertura, um tanto acadêmica, é que o bagulho está doido mesmo (para usar a linguagem das redes sociais) e repor a forma coloquial de uma crônica em sua brasilidade. Para fugir um pouco do cenário nacional e o seu (des)governo e do ambiente internacional pandêmico, aponto para o que chamou atenção no espetáculo que o já quase ex-presidente Trump promoveu, tentando desviar a atenção de sua fragorosa derrota. Com isso, pôs em xeque o que o povo americano tem de mais valioso (ao menos aos meus olhos): a Democracia. Isso também impressionou o Tocqueville supracitado, em meados do século XIX, sem saber que o histórico daquele regime chegaria ao Trumpismo.

Alexis de Tocqueville, pensador francês, liberal, visitou os EUA em 1831, fazendo um levantamento detalhado da vida americana, e ao cabo de suas incursões pelo Novo Mundo, publicou a obra, Da democracia na América, que se tornaria um clássico. “O estado social dos americanos é eminentemente democrático. Teve esse caráter desde o nascimento das colônias e o tem mais ainda nos dias de hoje.” (55) Em 1776, tornou-se independente da coroa britânica; posteriormente, em 1787, foi promulgada a Constituição, que uniu os territórios sob o regime de uma república presidencialista. Os ideais de liberdade e igualdade (as lutas pelo fim da escravidão ainda teriam desdobramentos ao longo do século XIX) impulsionaram a implantação daquele modelo de democracia moderna – para diferenciar do mundo grego, na antiguidade. A Revolução Americana inspiraria movimentos como a Revolução Francesa e as independências das colônias da América Latina, na formação de novas repúblicas.

Tocqueville anotou que os “partidos são um mal inerente aos governos livres; mas não possuem em todos os tempos o mesmo caráter e os mesmos instintos (…) É o tempo das grandes revoluções e dos grandes partidos”. (197) No que o Partido Republicano se transformou, sob o comando de Trump, coloca-o distante do que preconizava o pensador francês. Agora, se quiser recuperar as virtudes da democracia americana, terá de promover profundas mudanças para tirar de seu programa o ranço fascista em que se transformou, com a ascensão de supremacistas brancos, imperialistas e toda sorte de malucos “terroristas domésticos” como definiu Biden, o presidente eleito. Trump fez uma campanha com a meta de tornar a América grande de novo, mas vai se retirar com sua soberba para não torná-la ainda menor. Cabe aos novos governantes e um parlamento menos arrogante colocar a casa em ordem, para compartilhar, com todas as nações livres, a reconstrução da ordem social e econômica do Planeta, pós-pandemia.

*Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

Observação do editor: Crédito da imagem: Pete Linforth / Pixabay

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4 Comentários

  1. Financial Times publicou um artigo noutro dia, ‘O acordo das corporações da América com o diabo’. Corporate America’s deal with the devil. Facil de achar. Trabalhando para retirar o Trump do poder após a eleição. O sujeito que deu o maior desconto de impostos para as corporações desde Bush. Fala de um paper publicado em 2014 pelo Institute for New Economic Thinking (Cambridge). Segundo o mesmo, quando a opinião muda entre os 10% mais ricos da população americana é muito mais provável uma mudança de politica. Trump seria o sintoma de um pendulo que foi muito longe na direção das corporações, corrupção na economia e politica.
    Artigo também fala no investimento de 200 milhões de dólares feito por empresas para mudar a legislação trabalhista na Califórnia (Proposição 22). Alás, é muito comentado em podcasts americanos o tal artigo. Meios militares aqui no Brasil também estão a par do assunto.
    Resumo da opera: há algo de podre no reino da Dinamarca.

  2. Trump incentivou manifestações (não importa o motivo). Segurança teve uma falha catastrófica. Se fosse na França haveria muitas filas de policiais (as Cias Republicanas de Segurança) na frente de prédio, com capacete, escuto, cassetete e 1,90 de altura. Sinalizando ‘quem vai ser o primeiro a levar uma coça’. Nos EUA meia dúzia de gatos pingados.
    Morreu gente. Jornalista que presenciou a invasão (tinha credencial para cobrir lá dentro) comentou que eram 200 ou 300 (de uns 100 mil). A rotunda do Capitolio tem uns painéis centenários. Presenciou pessoas sentarem no chão, apertarem baseados e depois apreciarem as obras de arte fumando maconha. Salvador Dali em algum lugar ri.

  3. Obama teve 69,5 milhões de votos em 2008 e 66 milhões em 2012. Trump teve 74 milhões de votos na ultima eleição. 7 milhões a menos do que Biden (que virou senador ainda com a guerra do Vietnã ainda acontecendo). Ouve fraude? Sem duvida nenhuma, sempre aconteceu. Suficiente para mudar o resultado? Muito pouco provável.
    Aqui, ao contrario dos EUA onde os estados decidem como vão votar (papel, cartão perfurado, voto eletrônico), bastante democrático, é muito fácil contestar o resultado das eleições. Mas fazer prova de fraude como? Como provar algo se toda informação está na mão da justiça eleitoral? Alás, se um governo estrangeiro alterar via invasão de computadores vão ficar sabendo?
    Voto impresso foi aprovado no governo Dilma. Aconteceu veto. Veto foi derrubado. STF derrubou a lei. Democraticamente.
    Defendo impressão por amostragem para permitir auditoria.

  4. Tocqueville pode ter seu pensamento sobre a democracia na América naquele tempo resumido em três tópicos. Governo/instituições locais; sociedade civil organizada e espirito religioso (que atenuaria o materialismo e individualismo exacerbado). Não é incomum, por exemplo, alguém falando em ‘devolver a comunidade’, engajar-se em serviços voluntários ou negócios com grau elevado de filantropia.
    Outro aspecto que foge a percepção dos tupiniquins, a federação americana. Direito, por exemplo, é um curso que deve ser cursado preferencialmente (é doutorado profissional, há que ser ter uma graduação antes) no estado onde se pretende exercer a profissão. Legislação estadual tem outro peso. Se um causídico atua na Republica Socialista da Califórnia, por exemplo, e começa a pegar casos no Texas vai acabar fazendo outro exame da ordem naquele órgão federativo. Até para exercer a profissão na Suprema Corte não é automático, cortes federais idem.
    Alás, na ultima eleição Nova Jersey liberou a maconha. Pensilvânia, se não me engano, votava liberação de cogumelos (não sei o que deu). Ambos proibidos por lei federal. Vai parar na SCOTUS.

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