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Carlos Menem: o homem que queria ser Facundo – por Leonardo da Rocha Botega

“(…) Facundo, ainda que gaúcho, não tem apego a um lugar determinado: é riojano, mas educou-se em San Juan, viveu em Mendonza, esteve em Buenos Aires. Conhece a República: seus olhares se estendem por um horizonte; dono de La Rioja, quisera, naturalmente, apresentar-se revestido de poder na cidade em que aprendeu a ler, na cidade onde levantou umas taipas, naquela outra onde esteve preso e fez uma ação gloriosa. Se os sucessos o atraem para fora de sua província, não resistirá a sair por curteza nem por acanhamento. Muito diferente de Ibarra e de López, que não gostam senão de defender-se em seu território, ele acometerá o alheio e se apoderará dele”.

Foi assim que Domingos Faustino Sarmiento descreveu, em seu “Facundo: civilização e barbárie no pampa argentino”, a figura de Facundo Quiroga. Caudilho, político, militar, ex-governador de La Rioja, Quiroga se notabilizou como combatente federalista contra os unitários durante a guerra civil argentina ocorrida nas décadas de 1820 e 1830. Para o futuro presidente argentino, “El Tigre de los Llanos”, apelido recebido por Quiroga (após um mítico episódio onde teria matado um tigre em uma luta corporal), era pejorativamente o símbolo da barbárie em um país que precisava ser civilizado. Porém, para, o também riojano e último presidente argentino do século XX, Carlos Menem, Facundo era um ídolo.

Assim como Facundo, Menem também se notabilizou por ter sido uma liderança surgida na periferia argentina que emergiu como uma figura importante no jogo político nacional. Assim como Facundo, Menem também foi governador em La Rioja, província situada no noroeste da Argentina. Assim como Facundo, Menem também esteve preso. Facundo foi preso em 1819, na cidade de San Luiz, por ter se envolvido em uma briga. Menem foi primeiramente preso em 1976, após o Golpe Civil-Militar que depôs Isabelita Perón. Facundo tinha uma forte milícia sob o seu comando. Menem, apesar de todos os pesares contrários, tinha uma forte base eleitoral.

A vida política de Carlos Menem iniciou na década de 1950 quando, ainda jovem, conheceu o presidente Juan Domingos Perón e sua esposa Eva Perón. De imediato aderiu ao peronismo. Como presidente do Partido Justicialista de La Rioja participou da comitiva que trouxe o líder do movimento peronista do exílio em 17 de novembro de 1972. Líder regional, destacado por comandar um grande número de “punteros” (cabos eleitorais), governou sua província natal em três oportunidades, 1973-76, 1983-87 e 1987-89. Na última ocasião deixou o cargo para vencer, com ampla margem de votos, as eleições presidenciais argentinas.

Menem assumiu a presidência em 08 de julho de 1989, cinco meses antes do previsto, devido a renúncia de Raúl Afonsín. Era o retorno ao poder do principal movimento político argentino desde 1945. Porém, diferentemente, da imagem tradicional do peronismo, o novo presidente não foi nem nacionalista, nem tampouco popular. Em que pese as incongruências históricas da falta de uma unidade ideológica por parte do peronismo, até então o movimento fundado por Perón e pelos “cabecitas negras” nunca tivera uma vertente neoliberal. “El Turco” Menem apresentaria ao complexo cenário político argentino justamente essa vertente.

Ao longo de seus dez anos de mandato, o presidente argentino promoveu uma forte guinada nos rumos do país. No cenário internacional, foi o único presidente latino-americano a aderir à aliança liderada pelos Estados Unidos na Guerra do Golfo (1990-91). No cenário interno, privatizou boa parte das empresas públicas, estabeleceu uma taxa de câmbio com paridade de 1 para 1 entre o peso argentino e o dólar, reformou a Constituição, introduzindo a reeleição e abolindo a obrigatoriedade da religião católica como condição para o exercício da presidência, perdoou os responsáveis pelos crimes do Estado durante a ditadura e promoveu uma forte abertura do mercado argentino às exportações.

Como resultado, conseguiu controlar a hiperinflação e gerar uma sensação de abundância momentânea. Sensação está que escondia a forte degradação social gerada pela crescente precarização dos postos de trabalho e pelo desemprego. Durante seu governo um importante jornal argentino chegou a estampar a foto de uma favela com a legenda: “Bem vinda classe média!”. A explosão dessa degradação social, porém, não ocorreu em seu governo, mas sim, dois anos depois na presidência de Fernando de la Rúa, gerando os intensos protestos que levaram o país a ter cinco presidentes em uma semana.

Condenado por contrabando de armas para a Croácia e o Equador e preso preventivamente em 2001 (posteriormente seria absolvido por prescrição do caso), Menem voltaria a cena política em 2003. Como candidato à presidência, vence o primeiro turno com 24% dos votos. Acabaria desistindo do segundo turno ao antever uma avassaladora derrota diante do peronista renovador Néstor Kirchner. Em 2007, sofreria sua primeira derrota eleitoral em 30 anos, perde a eleição para governador justamente em sua província natal.

Apesar desta perda de aura, o homem que queria ser Facundo teve melhor sorte que seu ídolo. “El Tigre de Llano” acabou sendo assassinado em uma emboscada em Barranca Yaco, na Província de Córdoba, em 1835. Seu corpo foi esquartejado. Somente um ano depois, por interferência do governador de Buenos Aires, Juan Manuel de Rosas, é que sua esposa pode lhe conceder as honras fúnebres. “El Turco” faleceu no último dia 14 de fevereiro, aos 90 anos. Desde 2005 ocupava o cargo de senador por La Rioja. Graças a este cargo conseguiu não terminar a sua vida preso, mesmo condenado em 2019 por crime imobiliário cometido nas obscuras transações neoliberais da década de 1990. Em seu território soube defender-se.

*Leonardo da Rocha Botega, que escreve no site às quintas-feiras, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).

Crédito da foto (no destaque, Carlos Menem): Víctor Bugge / Divulgação.

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2 Comentários

  1. As experiências neo-liberais da América Latina sempre deram com os burros n’água. Usar ou misturar capitalismo com caudilhismo é perigoso. Vide Brasil, Argentina, Uruguay, Chile. Ainda, como latino-americanos, temos muito que aprender!

  2. Argentina já foi um pais desenvolvido (limpezas étnicas a parte). Não vamos longe, Uruguay já foi a Suíça da América do Sul. Teve capacidade de produzir prêmios Nobel. Não vamos longe, não chegamos lá e estamos indo pelo mesmo caminho.

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