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O juiz está nu! – Por Leonardo da Rocha Botega

Então houve o Torquemada da Inquisição espanhola. E também o de Curitiba

Uma das instituições mais controversas e terríveis da História Ocidental foi sem sombra de dúvidas o Tribunal do Santo Ofício, a Inquisição. Institucionalizado em 1233, durante o papado de Gregório IX, como um tribunal destinado especialmente para combater as heresias, seu método consistia em considerar os acusados culpados até que fosse provada a sua inocência. Uma das principais figuras da Inquisição foi Tomás de Torquemada (1420-1498).

Descrito pelos seus contemporâneos como “o martelo dos hereges”, Torquemada exerceu, ao longo de 15 anos, a função de Inquisitor-Mor da Espanha. Confessor da rainha Isabel de Castela, sempre teve muito prestígio junto à família real espanhola. Entre aqueles que considerava “grandes inimigos da fé católica” estavam os judeus. Chegou inclusive a publicar algumas orientações para que os cristãos identificassem seus vizinhos judeus e os denunciassem à Inquisição. Costumava difundir entre os seus subordinados eclesiásticos e os nobres espanhóis que o reino deveria possuir apenas sangre limpia, o sangre puramente cristão.

Defensor da expulsão definitiva de todos os judeus dos territórios espanhóis, promoveu em 1490 um episódio que serviu para aguçar ainda mais os ânimos contra os não católicos. A partir da acusação de práticas de rituais satânicos, entre esses a crucificação de crianças católicas, conduziu um grande julgamento-espetáculo que levou à morte oito judeus.

Alguns historiadores estimam que em torno de 10 mil pessoas foram vítimas da Inquisição Espanhola. Dentre essas, cerca de 2 mil teriam sido vitimadas em processos conduzidos por Torquemada. Em que pese as contestações a esses números, é inegável o papel desempenhado por Torquemada na produção do clima de intolerância religiosa que levou os Reis Católicos, Fernando e Isabel, a determinar, em 1492, que todos os “ditos judeus” deveriam deixar o reino para nunca mais retornarem.

A crueldade de suas ações, derivadas da forte intolerância e do firme fanatismo religioso, geravam muitos desconfortos na Santa Sé. Por conta disso, em 1494, o Papa Alexandre VI nomeou quatro assessores com iguais funções para acompanhar a Inquisição Espanhola. Era uma forma de diminuir os poderes indiscriminados do Inquisitor-Mor. Quatro anos depois, com poderes diminuídos, Torquemada acabaria falecendo em um mosteiro em Ávila.

Uma das frases mais citadas de Karl Marx é aquela em que o autor afirma que “se a história se repete, a primeira vez é como tragédia, a segunda como farsa”. A máxima que valia para a França de Luís Bonaparte, sobrinho de Napoleão, com as devidas proporções e cuidados históricos, também vale para o Brasil de Sérgio Moro. Conforme inúmeros juristas do mundo todo já vinham denunciando, o ex-juiz da Operação Lava Jato agiu o tempo todo como uma espécie de Torquemada de Curitiba.

Conduções coercitivas espetacularmente combinadas com empresas de comunicação, delações premiadas negociadas conforme o que era falado, cerceamento do direito de defesa, telefones de advogados de defesa grampeados, entrevistas transformadas em comícios, orientações de procedimento para procuradores, arbitrários mandados de prisão. Uma série de abusos de poder que chegaram a surpreender até mesmo os próprios parceiros. Em uma das tantas mensagens reveladas pela Operação Spoofing, uma das procuradoras chegou a afirmar: “essa eu não tinha visto ainda, mas no cpp russo tudo pode”. Russo era o codinome utilizado pelos membros da força tarefa da Lava Jato quando se referiam a Sérgio Moro.

Tal como na Inquisição de Torquemada, nos julgamentos de Moscou e no Macarthismo estadunidense, as sentenças de Sérgio Moro já estavam pré-estabelecidas antes mesmo do processo. O único “rito processual” aceito era aquele que confirmava o obcecado objetivo de perseguição e destruição do inimigo político. Como disse o ex-presidente Lula em seu depoimento: “o senhor está condenado a me condenar”. E assim, sem nenhuma surpresa, o Torquemada de Curitiba o fez.

Felizmente, para o bem do Estado Democrático de Direito e para minorar um pouco a péssima visão do exterior em relação ao Brasil, o Supremo Tribunal Federal chamou para si a função tardia de restabelecer as regras. Poderia ter resolvido essa questão lá em 2016, quando a defesa do ex-presidente Lula já havia levantado a questão de que o Sérgio Moro não era o juiz natural do caso. Mas talvez naquele momento “o grande acordo nacional, com Supremo com tudo”, proposto pelo então senador Romero Jucá, não pudesse ser feito. De todo caso, hoje o juiz está nu! Que a justiça e a democracia retomem o seu caminho e que os “novos Torquemadas” se tornem cada vez mais personagens jogados na lata de lixo da História.                

(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve no site às quintas-feiras, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).

Observação do editor a ilustração desse artigo é uma charge de Aroeira, reproduzida pelo blog do jornalista Altamiro Borges (AQUI)

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Um Comentário

  1. Narrativa que desejam fazer colar. Moro é o maldito que detonou o Molusco. TRF4 e STJ não existem. ‘Tortura’ nas delações premiadas, etc. Querem confundir o processo com os fatos. Para algum trouxa e para os crentes deve funcionar (não é só no campo Cavalão que existe ‘gado’).
    Propinoduto da Odebrecht tinha uma planilha. Todos sabem que lá existia um ‘Amigo’ e também sabem quem era o sujeito.
    Presidente atual do Peru é Francisco Sagasti. Antes dele houveram outros, óbvio. Alejandro Toledo recebeu grana da construtora. Alan Garcia deu um tiro na cabeça quando estava para ser preso na lava a jato peruana. Pedro Paulo Kuczynski é outro. Ollanda Humala é mais um. Keiko Fujimori líder oposicionista também no rolo. Construtora também assinou acordos (sem delação premiada) com Estados Unidos, Suíça, República Dominicana, Panamá, Equador e Guatemala.
    ‘Coitadinho’ do Molusco, obviamente, é inocente. E Odebrecht só não aprontou no Brasil.

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