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22 de abril – por Orlando Fonseca

Já houve tempo em que havia mais importância o 22 de abril, data que a História reserva como a do descobrimento do Brasil. Ao menos era o que a gente aprendia na escola, há muitos anos. Depois é que fomos acrescentando dúvidas à reverência patriótica da efeméride. Primeiro porque não se tratava de um “descobrimento”, pois se havia índios aqui, este seria, em verdade, um lugar há muito mais tempo descoberto. E se o povo recém-chegado foi tomando conta e se adonando de tudo, tivemos mesmo foi uma invasão, com o preço de muitas vidas do antigos proprietários do lugar. Em segundo lugar, naqueles longínquos anos do primário, tanto os professores quanto os livros didáticos, falavam de uma descoberta ao acaso. Cabral vinha passando ao largo, com a intenção de chegar às Índias, e assim, com um vento lateral, deu com os costados por aqui. Não apenas ele, mas uma frota de nove navios, o que sobrou das treze naus que partiram do porto de Restelo, em Lisboa. Por séculos, não éramos mais do que uma piada de português, um acidente de percurso. Mas eles vieram, viram e gostaram, e ainda tiveram que se acertar com seus vizinhos da Península Ibérica, em vários tratados, para que o Brasil adquirisse o desenho que hoje vemos no mapa. Por tudo isso, o aniversário foi adquirindo pouca importância.

Desconfio também que, por vir no calendário logo depois de um feriado – esse sim com mais fervor histórico – a data foi perdendo o brilho. Até pelo fato de que, em 21 de abril, celebra-se um herói que iniciou a luta pela independência daquele povo que, não apenas inventou a piada inicial da descoberta, mas também foi explorando a Colônia, foi esgotando as riquezas, não trouxe maiores progressos – a vinda de Dom João VI é apenas o soluço – nos legando um pátria de gente sem cultura, transformando a anedota original em tragédia nacional. Estou sendo drástico de propósito, para dizer que ainda é com muito esforço que a vida republicana nos tem proporcionado ferramentas para nos livrarmos da indigência. As sequelas estão presentes no cotidiano brasileiro, pois nosso país, no presente, é visto como um pária no mundo, em face da pandemia. Não porque o coronavírus circula célere por aqui, mas porque as autoridades federais, por não terem feito o que deviam, estão deixando o povo à mercê de uma praga letal. Isso tem a ver, sim, com muito do que a nossa colonização trouxe, com os degredados povoando a terra, com as Capitanias hereditárias e suas prebendas eternas, com a falta de estudos – bibliotecas só foram criadas a partir de 1808, com a vinda da Família Real, assim como escolas, assim como gráficas; a nossa primeira universidade só foi criada nos anos 40 do século passado. Com isso se proliferou uma cultura do senso comum, a crendice, os preconceitos, a ignorância estrutural (inventei agora). Não é à toa que hoje se fale em “terraplanismo”, que o povo se rebele contra a vacinação em massa, e que aceite tratamentos sem comprovação científica pela simples razão de que uma autoridade – não em medicina – faz propaganda massiva.

Ao tempo de Cabral, e antes dele, de Colombo, Vasco da Gama e os outros navegantes portugueses, a grande população da Europa – tanto nobres, gente do alto clero, quanto camponeses e soldados – acreditavam que a Terra era plana. A Península Ibérica era conhecida como “finis terrae”, dali para a frente – a leste – era uma massa de água que, em alguma parte, se derramava sobre um abismo infinito. Não foi fácil convencer investidores para o projeto das grandes navegações. Isso significa que, a descoberta de nosso país é mais do que uma simples ocupação de território, somos a prova da vitória da ciência sobre o senso comum. De tal modo que esse 22 de abril encerra em seu significado histórico mais do que o nascimento do Brasil. Para um momento em que a pandemia se torna mais aguda em nosso país, em razão da ignorância generalizada, foi isso que me ocorreu para dar sentido ao nosso antigo aniversário.

*Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

Crédito da foto: Gerd Altmann / Pixabay

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4 Comentários

  1. Terraplanismo veio a baila por motivos políticos. Discurso rasteiro para ‘incluir’ uma militância ignorante portadora de problemas cognitivos. Comprando briga com a militância massarundubica idem.
    Cultura do senso comum manda limitar o debate histórico no nível ensino fundamental. Só que os Vikings chegaram no Canadá 500 anos antes de Colombo. Deixando de lado as teorias da conspiração envolvendo o mapa de Piri Reis, Pitágoras e Aristóteles já defendiam que a Terra era esférica (contrariando o senso comum). No Musaeum, que incluía a Biblioteca de Alexandria, algo como 200 A.C., ou Antes da Era Comum, Eratostenes calculou a circunferência da Terra, algo como 40 mil quilômetros 39689,6. Valor real mais aceito é 40.075 Km.
    Resumo da ópera: conhecimento se perde, é esquecido. Levar o nível do debate para baixo do garrão da cobra não ajuda.

  2. Galera da Academia acha que Academia é resposta para tudo. Pessoal do jurídico acha a mesma coisa do direito. Há quem ache que a tecnologia é a resposta para tudo. Primeira universidade da Latino América é de Lima no Peru, 1551. Do mesmo ano é a do México. Bolívia conseguiu a primeira em 1552. E daí? Estão melhores do que o Brasil? Cultura do senso comum pura e simples.
    Bibliotecas? Números há para todos os gostos. Brasileiro médio leria 5.2 livros por ano, o alemão 5.7. Deutsche Welle tem uma série de vídeos no Youtube abordando a cultura alemã. Num deles afirma-se que Alemanha perde para o Brasil e outros países menos cotados em termos de leitura, ou seja lenda urbana. Pior, o assunto preferido por lá são livros de ficção com crime e mistério. Alemanha está pior do que o Brasil?

  3. Para ser drástico seria imperativo agradecer a Napoleão. Não fosse por ele a família real não viria para o Novo Mundo. Dom João não abriria os portos, traria a imprensa, proibiria a Inquisição, criaria o Banco do Brasil, os cursos de medicina na Bahia e RJ e engenharia no estado fluminense. Mais uma ‘narrativa’ histórica, colocar no mesmo balaio o colonialismo sul-americano com o de outras plagas.

  4. Questã de ponto de vista.
    ‘Descoberta’ porque o mundo mais avançado tecnologicamente não sabia que existia. A reciproca era verdadeira, povos que aqui viviam, alas, não tinham saido na idade da pedra. Estagio de evolução medido pelos materiais utilizados. Apesar da ‘narrativa’ tentar fazer pensar que viviam num estado de pureza primordial, uma espécie de ‘comunismo’, guerreavam entre si, praticavam infanticídio e até consumiam a carne dos inimigos.

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