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A continuidade retórica entre varguismo, a ditadura militar e o lulismo – por Michael Almeida Di Giacomo

Um livro e a comparação entre três períodos históricos (recentes) do Brasil

O professor de estudos latino-americanos da Universidade Tulane, EUA, Idelber Avelar, desenvolveu uma pesquisa sobre os processos políticos e o funcionamento da linguagem no contexto brasileiro do século XXI, a resultar na edição da obra: “Eles em Nós – retórica e antagonismo político no Brasil do século XXI”.

Ao folhear de forma aleatória os capítulos do livro passei a ler com mais atenção o tópico no qual o pesquisador revela uma simetria hiperbólica, no sentido e na expressão dos discursos, que teve início na era Vargas (leia-se, período ditatorial e democrático), a permear os anos de chumbo e a repousar nos anos lulistas (primeiro e segundo governos).  

Avelar sustenta que restou formatada uma cadeia de hipérboles com início na era Vargas e “à sua reinvenção do Brasil por meio da categoria ‘povo’”. A premissa tem por fonte a pesquisa desenvolvida por Maria Emília Lima e autora da obra: “A construção discursiva do povo brasileiro: os discursos de 1º de maio de Getúlio Vargas”.

Maria Lima, que garimpou todos os discursos proferidos por Vargas, constatou o surgimento do populismo no país – a partir do estabelecimento de um relacionamento entres as massas populares e o Estado –  à luz da categoria “povo” –  tendo seu significado canalizado sob a dimensão de “uma entidade homogênea, associada com o Estado-nação e a pátria”.

A par de que o populismo formula de forma exacerbada seu discurso por meio do substantivo “povo”, a autora afirma que o varguismo foi muito eficaz ao recorrer ao antagonismo como ordem dicotômica no debate político nacional.

Entre os recursos retóricos mais presentes no discurso de Vargas, Lima aduz como destaque: “a miséria do povo”, “os inimigos do povo” e “o suor do povo”. No que Idelber Avelar entende que os inimigos do povo, por definição, estão “fora” do povo. Uma estrutura paradoxal onde “é descrita uma totalidade (o povo) e na qual há aqueles que se colocam externos a essa totalidade”.

Nesse aspecto, o autor compreende o populismo enquanto gerenciamento de antagonismos, definido na forma como o povo e “aquilo” que é externo ao povo se relaciona.

A máxima retórica, segundo Avelar, ressurgiria na ditadura militar e também no discurso lulista, “nos quais os choques políticos são traduzidos como uma grande dicotomia entre o povo e aqueles que escolheram permanecer fora dele”.

Um raciocínio interessante de Avelar é o de que na tradição brasileira os usos do antagonismo tendem a ser maleáveis, uma vez que “aqueles que são e os que não são incluídos no povo variam”.

Nessa construção doutrinária, “o varguismo e o lulismo constantemente jogaram com essa ambiguidade: às vezes o inimigo parecerá estar por toda a parte, às vezes, em lugar nenhum”.

No caso do lulismo, entre outros, o pesquisador ilustra o cenário no qual o líder máximo da nação restava por lançar um discurso “inflamado e raivoso para sindicalistas pela manhã e dissolvido em um evento coletivo com políticos oligárquicos à tarde do mesmo dia”.

Em relação à ditadura militar, o sistema de antagonismos nem sempre foi fixo e estável, no que Avelar destaca como paradoxal o fato de a ditadura brasileira ter sido o primeiro governo a reconhecer a independência da socialista Angola. De modo que o ditador Ernesto Geisel, de forma pragmática e no encontro de uma nova etapa nas relações com o continente africano, não teve problema em manter relações com o novo regime angolano.

Outro fato interessante foi que o regime – sedento por torturar, assassinar e restringir direitos da cidadania de inúmeros artistas, jornalistas e intelectuais – permitiu que Dias Gomes, reconhecido militante comunista, pudesse escrever novelas para a TV Globo, emissora amiga da ditadura. A referida situação leva Avelar a concluir que “no Brasil, montar e desmontar pactos políticos tem sido norma, à qual nem a ditadura militar foi exceção”.

Na comparação com o período varguista, a ditadura militar tinha diferenças retóricas no que se refere à propaganda do regime. O varguismo era centrado mais na imagem física do ditador e, também, em mensagens gravadas com sua voz que causavam muito impacto em meio às pessoas.

Já a ditadura militar era baseada, principalmente, em imagens de grandes obras como barragens e rodovias e, ainda, “na vida cotidiana de famílias, o carnaval, o futebol ou os locais de trabalho”. No entanto, Avelar constata que a diferença ocorrida na propaganda dos dois regimes não se reproduzia no discurso dos ditadores da década de 1970, uma vez que o povo retratado na concepção da ditadura militar “tinha raízes no jogo entre ‘o povo brasileiro’ e a ‘nação brasileira’ desenvolvida na ditadura do Estado Novo”.

O autor constata que, durante os três momentos políticos, houve um grande número de semelhanças formais no discurso. É nessa concepção que repousa a hipérbole nacional-desenvolvimentista nos referidos períodos históricos, “cuja condição de possibilidade é a desconsideração da escassez”.

Nesse aspecto surge de forma explícita no discurso lulista um tanto de admiração pela política econômica pertencente ao projeto nacional da ditadura militar, ao passo que o próprio ex-líder metalúrgico, em 2002, elogiou o ditador Médici “por levar o Brasil ‘ao maior boom de empregos da história desse país e a um crescimento de 10% ao ano’”.

E foi mais além, no mesmo discurso chegou a dizer que “apenas três vezes o Brasil já pensou estrategicamente: nos governos de Vargas e Kubitschek e sob os militares”. Em 2008, ao referir-se sobre o mesmo Médici, foi enfático ao dizer que não se deve ficar a julgar as pessoas por um ou dois gestos, “sem compreender os outros gestos que as pessoas fizeram, que permitiram que o Brasil encontrasse o seu rumo”.

Por derradeiro, o interessante de ser observado na pesquisa e na cognição desenvolvida por Avelar, é justamente o encontro pela análise do discurso pontos em comum e até simetria argumentativa em matrizes políticas de certa forma dissociadas, mas que ao convergiram no discurso acabam por fazer seus extremos se tocarem.

(*) Michael Almeida Di Giacomo é advogado, especialista em Direito Constitucional e Mestre em Direito na Fundação Escola Superior do Ministério Público. O autor também está no twitter: @giacomo15.

Observação do Editor: a foto (O presidente Getúlio Vargas durante evento do Dia do Trabalho no estádio São Januário, em 1941), que ilustra este artigo, é uma reprodução da internet, sem autoria determinada.

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Um Comentário

  1. Pergunta que não quer calar, porque o ‘pôvú’, com tantos defensores, encontra-se na situação em que está?
    Problema das ‘ciencias’ humanas é o método ‘cientifico’ ‘modificado’ e a falta de falseabilidade.
    Vargas é um paradoxo, regime torturou e matou mais, sem falar em outras barbaridades, mas para proveito politico dos comunistas não se fala nisto.
    ‘Militares’ do regime militar eram pelo menos duas facções. Geisel não tinha nenhuma contradição, restabeleceu relações diplomáticas com a China que patrocinou a guerrilha do Araguaia. Para simplificar, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa e vice-versa. Tem um não alinhamento a la francesa (até por conta do Carter em certa época) e um pouco de Kissinger.
    Molusco é a incorporação de Macunaíma. Nada muito complicado.

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