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Sobreviventes – por Orlando Fonseca

A sensação é a de que chegamos à ilha, após o naufrágio. Segundo o que nos disseram, são poucas braçadas até à costa, a qual podemos enxergar esperançosos. Apenas devemos aguardar o melhor momento da maré. Semana passada tomei a primeira dose da vacina, e me junto à felicidade que vi em inúmeras matérias na imprensa. Ao longo dos meus anos de vida, cujo número me permite estar entre os grupos prioritários, jamais havia presenciado tal felicidade coletiva. Participei da alegria dos que comemoravam a conquista da segunda Copa do Mundo pelo Brasil, sem entender muito; já compreendendo tudo, e ainda assistindo ao vivo os jogos, vibrei com o tricampeonato no México e também saí gritando pelas ruas é Tetra! É tetra! No entanto, a manifestação coletiva de euforia era isso, uma explosão momentânea. Agora, percebo algo que se enraíza em nossa dimensão humana, é como se participássemos todos de uma celebração à superação em nome da vida, graças à ciência. Não tem similar. Somos sobreviventes, e isso é capaz de nos encher de um gozo indizível. Mas nos coloca diante de um grande desafio.

A todos apreensivos – ou a maioria – com a expansão da pandemia, com a resistência de um vírus que não dá mostras de rendição nessa guerra, as cenas de alegria dos vacinados não escapa sem um sentimento de solidariedade, uns porque já tomaram, outros porque almejam a sua dose o mais breve possível. Trata-se de um triunfo gigantesco do esforço científico, não apenas em busca do antídoto perfeito, ou ao menos eficaz, mas, de modo incompreensível para mim, contra a ignorância, os preconceitos, a banalização do comportamento ideológico. Sim, o senso comum é uma forma rudimentar de conceber o mundo e a vida em sociedade. Serve para a gente não ter de repensar os gestos, as atitudes a cada nova manhã. No entanto, não serve para resolver os grandes problemas, nem os pessoais, nem os da humanidade toda. E o que vemos é infantilização, para não usar um termo mais de uma administração pública, aliada a mitólogos e gananciosos, que não enxergam além de seus próprios umbigos – para sapecar um lugar-comum. Portanto, a minha alegria nesse momento, que se junta a milhares, milhões ao redor do Planeta, é a da inteligência, essa que nos trouxe até aqui no percurso civilizatório, nem sempre fácil, basta folhear os livros de História.

Algumas cenas mostradas pelos telejornais dão uma mostra do que sinto. As lágrimas de Tony Ramos ao receber a sua dose, comentando sobre o trabalho dos profissionais da saúde. O cantor Lulu Santos, dando um novo sentido à sua conhecida canção, “A cura”, ainda com a enfermeira aplicando a vacina em seu braço. Foi assim que saí do estacionamento do Shopping Praça Nova (excelente escolha do pessoal da Prefeitura, excelente organização dos agentes de trânsito e da Saúde) com vontade de fazer coro ao compositor da MPB: “Existirá, em todo porto tremulará/ A velha bandeira da vida/ Acenderá, todo farol iluminará/ Uma ponta de esperança”. Não é compreensível, daqui de onde olho, a reação de quem minimiza o número de mortos; que questiona, sem base, a eficácia das vacinas; que recomenda remédios para tratamentos profiláticos, quando a OMS, pesquisadores e associações médicas afirmam o contrário. Não dá para entender como ainda, mesmo diante da morte de gente querida, há quem não siga os protocolos de distanciamento, de uso de máscara e higienização das mãos. A cura de que precisamos, vai além dos efeitos deletérios da Covid-19. Existem mobilizações em favor da vida: além do trabalho dos profissionais de saúde, na linha de frente desta guerra, existem grupos solidários reunindo esforços para mitigar a fome e a miséria que se espalha como efeito colateral da pandemia. Quando esta virtude humana se espalhar, contagiar 70% da população, os sobreviventes estarão livres do obscurantismo, e “toda raça então experimentará/ Para todo mal, a cura”.

*Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

Crédito da foto: Fernando Zhiminaicela / Pixabay.

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5 Comentários

  1. Mortos viraram estatística que ninguém duvide. Problemas deles acabaram. E apesar de todos terem os seus, maior numero é o de sequelados diversos, gente precisando de fisioterapia, gente com problemas respiratórios residuais, gente que o paladar e olfato voltaram, mas não como era antes.
    Como diria Efepê: ‘Há sem dúvida quem ame o infinito, Há sem dúvida quem deseje o impossível, Há sem dúvida quem não queira nada Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles: […] Para eles a vida vivida ou sonhada, Para eles o sonho sonhado ou vivido, Para eles a média entre tudo e nada’.

  2. Banalização do comportamento ideológico. Nesta categoria entra quem deseja que os outros resolvam os grandes problemas da humanidade. Quem tem tempo e recursos (como os filósofos da antiga Grécia) para ‘repensar gestos e atitudes toda manhã’ (quem está em ‘modo sobrevivencia’ não tem este luxo).
    Percurso civilizatório observando os livros de história é bem claro, Roma nasceu, atingiu o auge e entrou em decadência. O mesmo aconteceu com os impérios Bizantino, Autro-Hungaro, Britanico, com um sem número de dinastias na China e com os americanos hoje em dia. Desconfio muito da Comunidade Europeia.

  3. Daqui duas semanas saberemos o resultado da Pascoa. Não dos templos, da praia e das festas clandestinas. Alás, general que acabou assumindo o exercito declarou em entrevista ao Correio Brasiliense (dia 28 se não me engano) que preparam-se para outro pico daqui 2 meses. Não é certo que acontecerá, mas é o comportamento da doença até agora, dois meses depois de um surto na Europa acontece um no Brasil.

  4. Noutra semana quiproquó aconteceu na União Europeia. Centralizaram aquisição de vacinas e na hora da distribuição o óbvio, farinha pouca meu pirão primeiro. França entrou no ‘último’ lockdown e na Alemanha ocorreram protestos contra as restrições. Alás, por lá surgiu o movimento Querdenker (pensadores laterais ou inconformistas). Reúne o pessoal prejudicado economicamente, galera anti-vacina, os que ‘defendem liberdades’, teoristas da conspiração diversas e um pessoal de direita. Se fosse nos EUA seriam tratados como fascistas, supremacistas brancos ou até negacionistas, aquele adjetivo desqualificador ‘cumpanhero’. Não dá para exigir do cão mais do que um ‘au-au’.

  5. Ainda ontem assisti o relato de um egípcio da chegada a ilha de Lampedusa na Itália. Barco apinhado de refugiados encalha num banco de areia distante algumas dezenas de metros da praia. Desembarcam e resolver fazer o resto do trecho a pé. Problema é que se existia o banco de areia não era difícil imaginar um buraco em algum lugar. Sete morreram afogados.
    Verdade é que a vida é um jogo de cartas (lugar comum para variar). Cada um recebe um organismo e uma sociedade, uma mão de cartas. Vacina serve para estimular o sistema imunológico e, dependendo do imponderável, faz efeito. Resumo da ópera é que todo cuidado é pouco.

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