Artigos

A violência nossa de cada dia – por Elen Biguelini

Quando Christine de Pizan escreveu a Cidade das Damas, entre 1404 e 1405, as mulheres já morriam na mão de seus maridos. Quando Olympe de Gouges e Mary Wollstonecraft reclamaram o direito das mulheres, durante o final do século XVIII, ainda muitas outras vidas femininas tinham sido perdidas em mãos masculinas com justificativas morais ou simplesmente porque não haviam feito o jantar.

A feminista francesa, ao escrever os “Direitos da Mulher e da Cidadã” em 1791, requeria a suas contemporâneas que descobrissem “seus direitos” (Gouges, 1791, 19). A autora perguntou aos homens: “Diz-me, o que te dá poder soberano para oprimir o meu sexo?” (Gouges, 1791, 13).

Esta pergunta cabe ainda hoje: o que leva os homens a baterem em suas esposas? O que os leva a agredirem a mãe de seus filhos? Por que pensam ter a possessão do corpo e da alma de suas esposas? Quem lhes deu o direito de agredir?

Ninguém. É esta a resposta. As mulheres, em pleno século XXI, já têm direitos iguais. Os reclames de Gouges de que “a mulher tem o direito de subir ao cadafalso; deve também ter o direito de subir à tribuna” (Gouges, 1791, 17) não tem mais a mesma necessidade.

Ainda assim, mulheres morrem na mão de seus esposos. Algumas “suicidam-se” após o marido as estrangular, outras aparecem mortas à beira de estradas; outras escondem as marcas da subjugação diária abaixo de quilos de maquiagem; outras desaparecem sem deixar vestígios; outras ainda levam tiros na rua, em frente a seus filhos, …

Mas o que, então, ainda leva homens a pensar que têm o direito sobre as mulheres a tal ponto que podem destruir seu corpo sem remorso?

Anos e anos de patriarcado dominante, de heteronormatividade, de homofobia, racismo, misoginia. …. Se até para as mulheres é difícil se desvencilhar da educação que nos foi imposta, na qual tudo aquilo que é masculino é superior, como podemos fazer para ensinar os meninos de que cabe a eles também respeitar o corpo e os direitos femininos.

Claramente, a questão é ainda maior quando nos lembramos de que a violência não é exclusiva ao sexo feminino. Negros, gays, lésbicas e pessoas trans também sofrem com esta violência cotidiana que parece ter se exacerbado mais recentemente.

São meninos negros desaparecidos por dias sem comoção nacional; são mulheres negras grávidas e inocentes que morrem em operações policiais; são crianças que perdem seus pais em ambos os lados da guerra contra o tráfico; são mulheres e homens trans que desaparecem sem deixar vestígios; são homens gays que acreditam na promessa de um encontro, somente para serem abusados e assassinados por assassino em série enrustido.

A violência já faz parte do nosso dia-a-dia.  

Como podemos lutar contra ela, então?

A luta é sobreviver! É continuar reclamando nossos direitos sempre que possível. É levantar placas com os nomes perdidos! Marielle Vive! Kathlen Vive! Menino Pedro Vive! Manuelas, Amélias, Lias, Joanas, todas permanecem na alma e memória coletiva de todos nós. Não serão esquecidas, não serão apagadas. A voz delas se perdeu em meio ao mar de masculinidade hegemônica violenta, mas nós não nos calaremos perante esta mesma opressão.

Os vitoriosos serão aqueles que defendem a igualdade, não aqueles que desejam o mal!

Muitas vidas ainda serão perdidas nesta guerra interminável. São séculos e séculos de possessão sobre o corpo feminino. Mas a história demonstra que as mulheres tudo conseguem quando se juntam para tal.

PIZAN, Christine de; DEPLAGNE, Luciana Eleonoro de Freitas Calado (trad.). A cidade das damas. Editora Mulheres: Ilha de Santa Catarina, 2012.
GOUGES, Olympe de. “O direito da mulher. In. GOUGES, Olympe de. et al. BARRADAS, Ana (trad.) Direitos da mulher e da cidadã. Ela por Ela: Lisboa, 2002.

(*) Elen Biguelini é Doutora em História (Universidade de Coimbra, 2017) e Mestre em Estudos Feministas (Universidade de Coimbra, 2012), tendo como foco a pesquisa na história das mulheres e da autoria feminina durante o século XIX. Ela escreverá semanalmente aos domingos, no site.

Artigos relacionados

ATENÇÃO


1) Sua opinião é importante. Opine! Mas, atenção: respeite as opiniões dos outros, quaisquer que sejam.

2) Fique no tema proposto pelo post, e argumente em torno dele.

3) Ofensas são terminantemente proibidas. Inclusive em relação aos autores do texto comentado, o que inclui o editor.

4) Não se utilize de letras maiúsculas (CAIXA ALTA). No mundo virtual, isso é grito. E grito não é argumento. Nunca.

5) Não esqueça: você tem responsabilidade legal pelo que escrever. Mesmo anônimo (o que o editor aceita), seu IP é identificado. E, portanto, uma ordem JUDICIAL pode obrigar o editor a divulgá-lo. Assim, comentários considerados inadequados serão vetados.


OBSERVAÇÃO FINAL:


A CP & S Comunicações Ltda é a proprietária do site. É uma empresa privada. Não é, portanto, concessão pública e, assim, tem direito legal e absoluto para aceitar ou rejeitar comentários.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo