“Meu grande sonho é ser gente” – por Leonardo da Rocha Botega
Os retratos cotidianos da miséria e a mulher presa por furtar miojo para comer
“Meu grande sonho é ser gente”. Esta frase foi pronunciada por Rosângela Sibele, 41 anos, ao sair da prisão após 18 dias. Mãe solo de cinco filhos, dependente química, desempregada e moradora de rua há mais de dez anos, Rosângela foi presa por furtar dois pacotes de miojo, uma Coca-Cola 600ml, uma lata de leite condensado e um pacote de suco em pó. Justificou a atitude dizendo que “só estava com muita fome e queria muito comer um miojo”.
Alguns meses antes da prisão de Rosângela, uma cena chocou o país: em Cuiabá, capital do Estado do Mato Grosso (o campeão de valor de produção agrícola), centenas de pessoas faziam fila em um açougue que distribuía ossos com retalhos de carne. “Tem gente que pega e já come cru, ali mesmo” disse Samara Rodrigues de Oliveira, dona do estabelecimento, ao G1. Alguns dias depois da soltura de Rosângela, outra cena chocou o Brasil: cerca de dez pessoas penduradas em um caminhão de coleta catando alimentos em meio ao lixo.
Segundo pesquisa realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), em fins de 2020, 19 milhões de brasileiros e brasileiras passavam fome. Essa mesma pesquisa indica também que 55,2% dos lares brasileiros, ou seja, cerca de 116,8 milhões de pessoas, conviviam com algum grau de insegurança alimentar. É o maior número registrado desde 2004! E o que é pior: o número de famintos registrado é quase o dobro do que foi registrado pelo IBGE em 2018, cerca de 10 milhões.
O mesmo IBGE registrou que em 2020 havia 11 milhões de mães solo no Brasil. Nesse mesmo ano, 8,5 milhões de mulheres saíram do mercado de trabalho. São mulheres que se somaram aos 14,4 milhões de brasileiros e brasileiras desempregados e desempregadas, segundo a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua). A maior parte destes e destas sem qualquer perspectiva em um país onde até mesmo os trabalhadores precarizados estão deixando de serem precarizados, como podemos ver no grande número de motoristas de aplicativo que estão abandonando o trabalho por conta dos custos de manutenção dos veículos.
Conforme reportagem do Estadão do último dia 13 de setembro de 2021, o desemprego é um dos principais fatores que agravam a dependência química. Segundo o Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad) feito pela Fiocruz, existem cerca de 3,5 milhões de dependentes químicos no Brasil. Cerca de 28 milhões de brasileiros e brasileiras tem algum dependente químico na família.
Mesmo assim, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os gastos do Ministério da Saúde com políticas de atenção à saúde dos usuários de drogas em 2019 foi o menor dos últimos 15 anos. Foram R$ 22,6 milhões destinados para área, número muito inferior aos R$ 1,5 bilhões investidos anualmente ente 2014 e 2017. Um corte que afeta, sobretudo, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), onde muitos outros e outras brasileiros e brasileiras buscam tratamento, entre esses e essas, Rosângela e muitos e muitas moradores e moradoras de rua.
São 221.869 brasileiros e brasileiras que, segundo o mesmo IPEA, moram na rua. Quase 39 mil pessoas passaram a viver nas ruas entre março de 2018 e março de 2020. Entre as razões que levaram as pessoas a esta situação, 35,5% foram por problemas de dependência química e 29,8% por causa do desemprego. Apenas 11,5 % dos moradores e das moradoras de rua do Brasil têm acesso a algum benefício do governo, a maior parte, 3,2%, à aposentadoria.
Famintos, famintas, desempregados, desempregadas, dependentes químicos, moradores e moradoras de rua são pessoas que estão em condição de subcidadania no Brasil. São pessoas que tem seu direito à dignidade humana afetado. São pessoas que cotidianamente sofrem com a violência e os preconceitos de uma construção nacional que cada vez mais só olha para o andar de cima. Uma construção que despreza os dados sobre às condições sociais da população para poder forjar um projeto de país que reproduz esses mesmo dados.
Rosângela Sibele é uma faminta, desempregada, dependente química e moradora de rua. Está em todos esses dados desprezados e por isso também se sente uma desprezada. Não se sente gente em um país que desde a escravidão se acostumou a tratar boa parte de sua população como “não gente”. Um país que condena quem rouba mercadorias estimadas em R$ 21,00 e faz vistas grossas para quem manipula o câmbio para lucrar com investimentos em paraísos fiscais.
(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve no site às quintas-feiras, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).
Nota do Editor. A imagem que ilustra este artigo (fila em Cuiabá, para pegar ossos de carne em um açougue), é uma reprodução obtida na internet. Você encontra a original AQUI.
‘A desempregada de 41 anos é mãe de cinco filhos e mora há mais de 10 anos, entre idas e vindas, nas ruas da capital.’ ‘Rosângela Sibele contou ao “Brasil Urgente” que é dependente química e pretende focar no tratamento do vício em crack.’ ‘“Estou com acompanhamento no CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), tomando medicação, indo no NA (Narcóticos Anônimos). Quero conversar com minha mãe, abraçar meus filhos, explicar isso. Quero pedir perdão à minha família. Entendi o que eu estava fazendo com minha família. Ninguém tem a obrigação de cuidar dos meus filhos, eu tenho. Por quê fiz isso com elas? Quero pedir perdão e ir para uma clínica”. ‘“Eu cheguei a mexer no miojo e no suco. Mas na verdade, o que eu coloquei na sacola foi uma lata de leite condensado e uma coca-cola de 600ml bem gelada. Na hora que eu estava saindo a menina perguntou se eu não estava esquecendo nada. Eu estava entregando na mão dela, mas a viatura viu. Ela também chamou a viatura“