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30 anos da vista mais linda da cidade – por Leonardo da Rocha Botega

Um pouco da história da ocupação que se tornou o bairro Nova Santa Marta

Era setembro de 2004, domingo pela manhã, caminhava pelas ruas de terra da Nova Santa Marta com o meu amigo Bigode. Conversávamos sobre vários assuntos, do futebol à precariedade das políticas públicas, quando, após um breve silêncio, ele me convidou para ver o quintal de sua casa. Chegando lá, me mostrou o horizonte e me disse: “sabe o porquê de eu querer sempre viver aqui? Aqui tenho a vista mais linda da cidade. Lutamos muito por ela”.

Alguns meses antes, havia defendido minha monografia de especialização em História do Brasil intitulada “Ocupação da Fazenda Santa Marta em Santa Maria – RS (1991-1993)”. O trabalho nasceu dos contatos que tive com o local ao longo dos anos de 1999 e 2000, quando atuei no Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos, o MOVA-RS. A ideia era procurar contar um pouco da História dos “Sem História”, a História dos excluídos de uma historiografia acostumada a escrever sobre o centro e as “personalidades” do município.

A História da Nova Santa Marta começou em 7 de dezembro de 1991, quando um primeiro grupo de 180 famílias iniciou a ocupação da área da antiga Fazenda Santa Marta. Após esta primeira ação, o restante das 357 famílias, que desde o ano anterior vinham sendo organizadas pelo Movimento Nacional de Luta pela Moradia, se somou àquela que foi a maior ocupação urbana da História do Rio Grande do Sul e uma das maiores da História da América Latina.

A Fazenda Santa Marta pertencia ao Estado do Rio Grande do Sul desde sua desapropriação, em 30 de novembro de 1978, e tinha uma área aproximada de 1.200 hectares, dentre os quais 39 hectares haviam sido utilizados em 1981 para a construção das 872 unidades habitacionais que formaram a Cohab Santa Marta. Em 1985, aproximadamente 343 hectares foram repassados à Companhia Estadual de Habitação do Estado do Rio Grande do Sul – Cohab/RS, com o objetivo de construção de um novo conjunto habitacional em até cinco anos. O que acabou não acontecendo.

Desde sua fundação, em julho de 1990, o Movimento Nacional de Luta pela Moradia reivindicava junto à Cohab/RS a redução dos níveis salariais exigidos para a aquisição das casas populares. A exigência de renda mensal entre dois e meio e cinco salários mínimos estava longe de atingir uma população que vivenciava a realidade de baixos salários, altos índices de inflação e desemprego em crescimento devido ao “choque de modernização neoliberal” promovido pelo governo de Fernando Collor de Melo. A carestia levou à ocupação daquela área. Assim como já havia levado inúmeras famílias a ocuparem outras regiões da cidade desde pelo menos 1960.

Aquelas 357 famílias iniciais enfrentaram a chuva, a lama e o frio debaixo das lonas pretas, enfrentaram também a truculência daqueles que ainda hoje tratam a questão social como caso de polícia, o preconceito e o descaso de governantes acostumados a olhar apenas para os privilegiados.

Organizaram um princípio de urbanização a partir da planta do Projeto que a Cohab não colocou em prática e lutaram muito para que a Nova Santa Marta fosse colocada nas políticas públicas. Uma colocação que somente foi possível em 1999, quando o governo do Estado do Rio Grande do Sul, na gestão de Olívio Dutra, apresentou o Programa de Reorganização Espacial, Qualificação Urbana e Regularização Fundiária da Fazenda Santa Marta/Santa Maria, mais conhecido como Projeto Santa Marta, que visava transformar a Fazenda Santa Marta em um novo bairro da cidade.

Passados 30 anos daquela primeira ação, a Nova Santa Marta vive uma outra realidade. O bairro, surgido da ação daquelas 357 famílias, possui hoje escolas, linha de ônibus, iluminação pública, unidade de Estratégia Saúde da Família (ESF) e, principalmente, boa parte de seus moradores possui seus imóveis regularizados.

Obviamente, muitos problemas antigos permanecem e novos problemas surgiram, por isso a luta, iniciada por Fernando Menezes, Élso Ferreira Pires, Leonel Pacheco, Fátima Olália, Pedro Zoe Barcellos, Vanderlei dos Santos entre outros e outras pessoas, como o já falecido Bigode, continua.

Afinal, as três décadas de Nova Santa Marta ensinaram que: para aqueles que não tem os privilégios originados de nossa terrível desigualdade social terem “a vista mais linda da cidade” foi preciso (e ainda é preciso) muita luta!

(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve no site às quintas-feiras, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).

Nota do Editor. A foto – sem autoria determinada – com vista parcial da Nova Santa Marta é uma reprodução.

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