KISS. Enfim, após (quase) nove anos, o julgamento
Começa o júri dos quatro réus do multi assassinato de 27 de janeiro de 2013
Reproduzido do Site do Correio do Povo / Reportagem assinada por André Malinoski (*)
O julgamento dos quatro réus acusados pela tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria, começa neste dia 1° de dezembro, no plenário do 2º andar do Foro Central I, em Porto Alegre. Os sócios da casa noturna, Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, e o produtor musical Luciano Bonilha Leão responderão por homicídio simples (242 vezes consumado, pelo número de mortos, e 636 vezes tentado, número de feridos). Seis processos judiciais apuram as responsabilidades, e o principal deles, que tramitou na 1ª Vara Criminal da Comarca, foi dividido e originou outros dois – falso testemunho e fraude processual. Houve a concessão do desaforamento, que se trata da transferência de julgamento para outra comarca, a três dos réus acusados – Elissandro, Mauro e Marcelo – para serem julgados em uma Vara do Júri da Comarca da Capital. Luciano foi o único que não manifestou desejo nessa troca. Entretanto, por meio de um Pedido de Desaforamento do Ministério Público, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJ/RS) determinou que o produtor musical se juntasse aos demais, para participar de um julgamento único, na capital gaúcha. Após passar a tramitar em Porto Alegre, o processo ganhou o número 001/2.20.0047171-0. O processo possuía 91 volumes e mais de 19,1 mil páginas até o último dia 23.
A tragédia daquele 27 de janeiro de 2013, que comoveu o Rio Grande do Sul e o Brasil, foi manchete nos principais jornais e sites de notícias do mundo. As cenas de desespero de quem escapou com vida da casa noturna e de pessoas tentando do lado exterior derrubar paredes a marretadas, para que houvesse um caminho alternativo para a fuga dos encurralados, invadiram os principais canais de noticiários. A triste madrugada começa agora a ser relembrada em julgamento. Um intenso aparato de segurança, com transporte, incomunicabilidade e isolamento de testemunhas e jurados, será colocado em prática. Tudo para que a Justiça seja feita e possa atenuar um pouco da dor de quem sobreviveu e dos parentes das vítimas. “O Poder Judiciário do Rio Grande do Sul vem se preparando há algum tempo para o júri do caso Kiss, do ponto de vista da organização de infraestrutura e logística. Esse julgamento representa a capacidade que temos de responder à sociedade de forma qualificada e eficaz, mesmo em um caso tão complexo como este e que demandou uma enormidade de incidentes recursais”, relatou o presidente do Conselho de Comunicação Social do TJ/RS, Antonio Vinicius Amaro da Silveira. “Por se tratar de algo muito grande e visado, será fundamental demonstrarmos a capacidade de propiciar o transcurso do julgamento dentro da maior normalidade possível”, completou o desembargador.
Incêndio
A madrugada do dia 27 de janeiro de 2013, há mais de oito anos, dilacerou dezenas de famílias. A Boate Kiss pegou fogo durante a apresentação da banda Gurizada Fandangueira, que acendeu um sinalizador pirotécnico no palco em torno das 2h30min. Faíscas atingiram o teto, forrado de espuma e isopor. As chamas rapidamente se alastraram no teto em função do material inflamável usado como isolamento acústico, o que produziu uma fumaça preta e tóxica. Na época, testemunhas relataram que alguns extintores não funcionaram quando os seguranças do local tentaram apagar as chamas. A boate, que comportava cerca de 750 pessoas, estava superlotada. Segundo investigadores, estavam no local aproximadamente 1,3 mil visitantes. O Corpo de Bombeiros estimou o número de frequentadores em torno de 1,5 mil. A casa noturna possuía apenas um acesso, usado tanto para entrada quanto para saída de pessoas, com porta de tamanho reduzido. Não havia saídas de emergência para o público. A perícia constatou a falta de itens de segurança, como chuveiros automáticos de teto para o caso de incêndio e de mais luzes de emergência indicativas do local de saída. O público acabou se dirigindo para os banheiros, onde a maioria das vítimas foi encontrada. A perícia concluiu que 100% das mortes foram causadas por asfixia. Os aparelhos condicionadores de ar e de exaustão contribuíram para tantas mortes, ao propagarem a fumaça tóxica em vez de fazerem sua dispersão. A Kiss estava aberta mesmo com o alvará fornecido pelo Corpo de Bombeiros vencido desde 10 de agosto de 2012. Também houve relatos de quem estava na festa e escapou de que os seguranças barravam pessoas que queriam sair sem pagar a comanda. Os feridos com gravidade foram direcionados para hospitais de Santa Maria e da região metropolitana de Porto Alegre, além da própria Capital, para onde foram levados com apoio de helicópteros da Força Aérea Brasileira.
O velório coletivo das vítimas aconteceu em um dos ginásios do Centro Desportivo Municipal de Santa Maria. Um total de 235 pessoas morreu no dia da tragédia, e outras sete faleceram posteriormente. Para assegurar os direitos e interesses dos familiares, além de garantir auxílio e amparo aos sobreviventes, foi criada a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) no dia 23 de fevereiro de 2013.
MP/RS quer prisão e condenação dos quatro réus
Os promotores do julgamento dos quatro acusados pela tragédia na Boate Kiss afirmaram durante entrevista coletiva à imprensa na sede do MP/RS, no dia 17, que pedirão a prisão e a condenação dos quatro réus. “Estamos falando de um processo que se arrasta no tempo e esperamos que o julgamento termine com o resultado que a sociedade espera: a condenação. O MP vai pedir a prisão dos quatro e sustentar a condenação”, salientou a promotora Lúcia Helena Callegari. “Estão no banco dos réus quatro pessoas que cometeram crimes”, completou. O colega de acusação, o promotor David Medina da Silva, segue a mesma linha. “Aqui começa a prestação de contas que precisamos fazer à sociedade gaúcha e ao mundo. A responsabilidade criminal é o que se faz com certeza, não com especulação”, observou. “O MP tem certeza neste processo de se tratar de homicídio doloso, o que sustentamos desde o início”, lembrou. Os promotores de Justiça mencionaram que estão atentos a manobras da defesa para atrasar ou interromper o julgamento e garantiram que não permitirão tais ações.
Reprodução digital será utilizada pela acusação
Uma recriação virtual de como era a Boate Kiss será utilizada pelos promotores de Justiça durante o julgamento. A antropóloga argentina Virginia Vecchioli, que é professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e responsável pela recriação digital da casa noturna, compartilhou com os jornalistas detalhes desse trabalho. “Constatamos, por exemplo, que muitos extintores de incêndio não estavam no lugar em que deveriam estar naquele labirinto que era a Boate Kiss”, apontou. O projeto é semelhante à reconstituição disponibilizada de um campo de detenção do período da ditadura argentina. O “El Campito” serviu como evidência este ano no megaprocesso Campo de Mayo, realizado no Tribunal Oral Criminal Federal nº 1, na Argentina. Percebe-se, a partir da animação, como havia barreiras impeditivas para uma fuga em caso de emergência, como sofás, degraus e divisórias de metal na parte interna da casa noturna. “O interior da boate, ou seja, o espaço do crime pode ingressar na sala de audiências. As testemunhas podem acompanhar a sua fala fazendo o próprio percurso, desde o ingresso até a saída da Kiss, por esse formato interativo”, detalhou a docente. Conforme a antropóloga, esse tipo de recurso digital tem sido utilizado em tribunais penais internacionais.
Advogados sustentam inocência dos acusados
Os advogados responsáveis pelas defesas dos réus tecem comentários e expectativas acerca do julgamento. “Estamos prontos para esse julgamento desde 16 de março de 2020, quando ocorreria o júri e o MP recorreu, pedindo o desaforamento para Porto Alegre. Agora é entrar em plenário com tranquilidade e demonstrar a total inocência do Luciano, que é inocente. O Luciano não tem nada a ver com isso. Ele é uma vítima da Boate Kiss também. O Luciano salvou pessoas no local e poderia ter morrido lá dentro. Então estamos preparados para o julgamento. Que venha logo o plenário”, salientou Jean de Menezes Severo, um dos advogados responsáveis pela defesa de Luciano Augusto Bonilha Leão, produtor musical da banda Gurizada Fandangueira.
O advogado Jader Marques, que defende Elissandro Callegaro Spohr, sócio da Kiss, também comentou o tema. “No dia 1° de dezembro, meu cliente, mais uma vez, estará à disposição da Justiça e da sociedade para falar sobre a sua responsabilidade, como é feito há quase nove anos. Lamentavelmente, faltarão 24 pessoas sentadas ao lado do Elissandro”, observou. “Agentes públicos foram apontados no inquérito da Polícia Civil como pessoas diretamente envolvidas no incêndio. A sociedade está prestes a assistir um dos capítulos mais tristes da Justiça brasileira, orquestrado por quem deveria zelar por ela. Como advogado e cidadão, vou falar aquilo que muitos não querem ouvir, mas que precisa ser dito”, ponderou o advogado.
A advogada Tatiana Vizzotto Borsa cuida da defesa de Marcelo de Jesus dos Santos, vocalista da banda Gurizada Fandangueira. “Queremos Justiça e não vingança. Ou seja, um julgamento justo, leal e sem artimanhas do MP. Pois ele sim, e os demais órgãos públicos, são os responsáveis por essa tragédia”, criticou ela. Os advogados Mário Cipriani e Bruno Seligman de Menezes, que defendem o sócio da boate Mauro Hoffmann, também se posicionaram. “Ao longo desses nove anos, analisamos o processo minuciosamente e estamos convictos de que não há provas da participação de nosso cliente nesse evento trágico”, afirmaram. “Trabalhamos com seriedade, profissionalismo e profunda crença na Justiça. Por isso, esperamos que todo o trabalho técnico que desenvolvemos ao longo desse tempo seja reconhecido pelo Conselho de Sentença, depois de um debate fundado pelos princípios do Direito”, acrescentaram.
No último dia 12, o ex-prefeito de Santa Maria Cezar Schirmer, atualmente secretário Municipal de Planejamento e Assuntos Estratégicos da Prefeitura de Porto Alegre, e o promotor de Justiça Ricardo Lozza foram arrolados como testemunhas no júri do caso Kiss. O juiz Orlando Faccini Neto, que presidirá o julgamento, concedeu o pedido feito pela defesa do réu Elissandro Callegaro Spohr para substituir duas testemunhas pelos novos indicados. O magistrado levou em consideração que a troca de testemunhas não encontra regra específica na legislação processual penal de hoje em dia (depois de mudança do artigo 397 do Código de Processo Penal, que indicava razão para a substituição de testemunhas), existindo dúvida se é preciso ou não um motivo para alteração de depoentes. “Independente disso, e sabido seja que na jurisprudência há dúvida acerca do tema, na espécie, em homenagem à ampla defesa, afastando-se os argumentos elencados pelo Ministério Público, defiro o pedido de substituição das testemunhas apontadas”, salientou Faccini ao site do TJ/RS na ocasião. Schirmer e Lozza confirmaram que irão depor no júri. “Assim como todos, também quero justiça. Estarei à disposição do Poder Judiciário como sempre estive ao longo de minha vida”, respondeu Schirmer por meio de sua assessoria.
O juiz também permitiu, no último dia 18, a presença de mais um profissional para cada bancada de defesa e da Assistência de Acusação no plenário durante o julgamento. O magistrado ainda autorizou a presença de um técnico do MP no local para auxílio aos promotores de Justiça. A decisão observa as novas regras alusivas à pandemia de Covid-19 divulgadas recentemente pelo governo estadual.
Familiares querem os responsáveis condenados
Os familiares das vítimas da Kiss esperam que o julgamento represente alívio para o sofrimento. Foram anos de angústias e incertezas em relação à responsabilização dos culpados. “Finalmente, depois de quase nove anos de muita espera, decepções e tentativas de adiamento, o julgamento vai acontecer”, diz o profissional da área de tecnologia da informação Paulo Carvalho, 71 anos, que perdeu o filho Rafael no incêndio. Paulista, Rafael, que havia completado 32 anos no dia 25 de janeiro de 2013, estava em Santa Maria visitando amigos e decidiu ir à casa noturna. “Não sei se a gente acostuma com a dor, mas há momentos que é como se estivéssemos naquela noite outra vez. Essa dor não tem como ser superada. Esses anos de espera conseguiram aumentar nossa dor”, reflete o pai. E a situação é muito parecida para outras famílias. “É o ponto final, isso precisa acabar. Estamos muito cansados e a situação se prolongou demais. Queremos viver um pouco”, desabafou a agropecuarista Jacqueline Malezan, 57 anos, de Santa Maria. Ela perdeu o filho Augusto, de 18 anos, que tinha encerrado o ensino médio. A mãe integra a AVTSM, onde ocupa o cargo de 2ª tesoureira. “É um anseio que vem conosco durante esses quase nove anos de espera e quem acompanhou a nossa trajetória e luta em busca de Justiça sabe dessa ansiedade”, revelou o presidente da AVTSM, Flávio Silva, que passou por um cateterismo no último dia 19. “Agora, na reta final para que o júri tenha início, estamos bastante apreensivos em relação a vídeos que estão sendo colocados nas redes sociais por defensores dos acusados em uma tentativa desesperadora de tentar vitimizar os réus de alguma forma, tentando mostrar uma versão totalmente contrária aos fatos, para sensibilizar a população e os jurados. Isso tem nos incomodado porque é muito ofensivo e desrespeitoso com as famílias”, explicou. O dirigente ressaltou ainda que a tragédia acabou unindo muito os familiares das vítimas. “Formamos uma grande família. Sabemos que os acontecimentos nos debates e no júri vão nos abalar e machucar. Nunca sabemos como a gente e os outros familiares poderão reagir nessas horas que serão muito dolorosas e tristes.”
Para muitos dos familiares das vítimas, não é uma tarefa simples se deslocar até a Capital. Além dos gastos com transporte, há custos para hospedagem e alimentação. Restaurantes associados ao Sindicato de Hospedagem e Alimentação de Porto Alegre e Região (Sindha) fornecerão alimentação gratuita e prestarão apoio às famílias inscritas para acompanharem o júri. Serão pelo menos 75 almoços fornecidos. O compromisso foi firmado pelo presidente do Sindha, Henry Chmelnitsky, e pelo prefeito de Santa Maria, Jorge Pozzobom. Para cada dia de júri, um restaurante associado será o responsável pela alimentação dos familiares. A AVTSM também promoveu uma “vaquinha” virtual para arrecadar dinheiro a fim de ajudar no transporte, na estada e alimentação dos familiares durante os dias do julgamento. A meta era angariar R$ 50 mil e, até o último dia 23, mais de R$ 28,1 mil haviam sido arrecadados. A chamada para a colaboração coletiva era “242 motivos para exigirmos Justiça”. Além disso, o Comando Militar do Sul (CMS) fornecerá alojamento para as famílias das vítimas nos quartéis da Capital. Por medidas de privacidade e segurança, os locais e o número de hóspedes não serão divulgados pelo Exército…”
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(*) Este material foi originalmente disponibilizado no sábado, dia 27, e atualizado cronologicamente pelo editor do site.
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