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O barco norueguês – por Marta Tocchetto

Nau dos sonhos: coragem e destreza dos aventureiros, “os vikings do Itaimbé”

A caixa de bacalhau se transformava em um barco. Um grande barco viking. Os três irmãos e eu éramos tripulantes e comandantes de uma nau de sonhos

O barulho da chuva e o cheiro de terra molhada já estavam fazendo falta. O início da semana passada foi saudado com as dignas reverências que as chuvas e as águas merecem. As águas que caem do céu são essenciais para recarregar os mananciais e para garantir o crescimento das plantas, especialmente as que fazem parte da nossa alimentação.

Frutas, verduras, legumes, grãos não conseguem se desenvolver sem o suprimento de água. A terra seca e dura vira um torrão estéril. As regas não conseguem compensar a vida que as chuvas trazem. As raízes enfraquecem comprometendo o crescimento e o desenvolvimento.

Dá uma tristeza olhar as plantas retorcidas, amarelecidas, desidratadas. Quase sem vida! É a fraqueza que acompanha os tempos de fome e miséria. Sem água, o viço e a vida entram em estado de latência, dormência, exaustão.

A vida paralisa sem água. Os animais também sentem e sofrem com a sua falta. A alegria tomou conta da cidade, do estado. A água que caiu do céu se transformou em chuva de bençãos, de gratidão. As plantas se ergueram rapidamente. O verde e as cores ficaram mais brilhantes.

A festa com chegada a chuva, depois de tantas semanas me fez sonhar. O aguaceiro me remeteu aos tempos de menina. Nesta época do ano, o mercado do meu pai, a Mercearia Bonifácio, exalava cheiro de bacalhau que se percebia, acredito, da Praça Saldanha Marinho.

Tenho comigo e sei que muitos contemporâneos irão concordar – bacalhau em Santa Maria se divide em dois momentos, no tempo do Bonifácio e depois do Bonifácio. O melhor bacalhau que essa cidade já comeu, sem exagero, foi o bacalhau do Bonifa, como alguns mais próximos o chamavam.

Os bacalhaus vinham da Noruega em caixas de madeira muito claras, lisas, brilhantes, enormes. Para dar uma ideia do tamanho, a largura era próxima a de uma cama de solteiro. O comprimento um pouco menos. Estampavam a imagem do peixe gravada à fogo, além da distante procedência. As tábuas se encaixavam perfeitamente como se fosse um móvel de classe, não apenas uma embalagem.

Lamento não ter guardado pelo menos uma para reusar como uma mesa ou outro mobiliário qualquer. Meu pai doava a maioria delas, mas algumas eram guardadas. Minha lembrança é dos dias de chuvarada. A caixa de bacalhau se transformava em um barco. Um grande barco viking. Os três irmãos e eu éramos tripulantes e comandantes de uma nau de sonhos.

O barco era carregado rua acima até a esquina do Jornal A Razão. Hoje, no local é uma lancheria Lucão. Na sarjeta cheia, nosso barco norueguês navegava por águas caudalosas. Ao chegar no topo da rua tomávamos as águas e a correnteza aos gritos e às gargalhadas, pulando para dentro da caixa.

Com a coragem e a destreza dos aventureiros, seguiam os quatro exploradores. Quatro marinheiros sem mar. Quatro vikings do Itaimbé. A embarcação embalava na descida da rua, só parando quando ficava plana. O fim da viagem era no posto de combustíveis Biazus, em frente ao Hotel Morotin.

Meu irmão simulava remos com tábuas para o controle da embarcação. Às vezes, o barco virava ou trancava, mas nada tirava a disposição dos quatro incansáveis marujos. Enquanto houvesse chuva e água na sarjeta, subíamos e descíamos sem parar.

A alegria e a gritaria chamavam a atenção dos transeuntes que paravam para ver até onde chegariam os quatro vikings que exploravam os “mares” do Itaimbé e enfrentavam, sem medo, o desafio das águas revoltas e monstros misteriosos.

As águas do começo da semana passada me transportaram para a embarcação dos meus sonhos, nosso barco norueguês, no qual só havia espaço para a alegria, para a pureza e para a aventura. Saudei a vinda da chuva desejando que o tempo retrocedesse e que as águas que caiam fortemente me transportassem para a rua Dr. Bozano 1544, hoje Rua Ângelo Uglione, para um reencontro com as brincadeiras de criança, com o cheiro de bacalhau e com a atmosfera de Natal.

Desejo a todos os leitores que não nos faltem sonhos para sonhar, tampouco nos falte coragem para enfrentar os desafios diários e seus os monstros misteriosos que habitam não apenas lembranças, mas fazem parte da dura realidade de tempos de desamor, injustiça e dor.

(*) Marta Tocchetto é Professora Titular aposentada do Departamento de Química da UFSM. É Doutora em Engenharia, na área de Ciência dos Materiais. Foi responsável pela implantação da Coleta Seletiva Solidária na UFSM e ganhadora do Prêmio Pioneiras da Ecologia 2017, concedido pela Assembleia Legislativa gaúcha. Marta Tocchetto, que também é palestrante em diversos eventos nacionais e internacionais, escreve neste espaço às terças-feira

Nota do Editor: a foto de caixas de bacalhau, que ilustram este artigo, são uma reprodução obtida na internet.

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