Qual é o padrão? – por Marta Tocchetto
A articulista, a importância das hortas e rabanetes “tortos, curvos, bifurcados"
Mas, o que é perfeição? É atender os padrões impostos? Só o tempo me mostrou o valor de não atender os estereótipos criados por uma sociedade que adora massificar.
A colheita na Horta do Beija-Flor – horta que montei durante o isolamento na pandemia – não foi como de costume, vegetais bem formados, de cores intensas, formato e padrão de envelope de sementes.
Perfeição! Mas, o que é perfeição? É atender os padrões impostos? Os rabanetes que colhi podiam ser qualificados como rabanetes monstros. Quase nada semelhantes à variedade comprido semeada e à foto do envelope.
A lida diária na horta me fez enxergar a riqueza destes espaços. Hortas são espaços de educação ambiental. Educação é transformação. Transformação de posturas, atitudes, inclusive de padrões. Hortas são espaços de questionamento, inclusive de imposições. Educação é autonomia, liberdade.
É por isso que minhas experiências “horteiras” têm sido compartilhadas para inspirar um mundo melhor, mais justo e mais saudável para todos, indistintamente. E os rabanetes compridos onde entram nessa história? No questionamento dos padrões.
Perfeição é vestir 36/38? Beleza é nariz pequeno? É olhos azuis? Cabelos lisos? Crespos? Durante muito tempo, acredito que estas perguntas atormentaram vidas e nutriram sonhos impossíveis. Hoje, inquietam cada vez menos.
Estas perguntas na minha adolescência tinham respostas positivas. Nunca me enquadrei nos padrões vigentes, mas tentei buscá-los. Só o tempo me mostrou o valor de não atender os estereótipos criados por uma sociedade que adora massificar.
Olhei para os meus rabanetes com este olhar. Olhos de encontrar beleza. A beleza está em tudo e em todos, basta que se queira enxergá-la. Vi que eles tinham folhas enormes, tenras, crocantes, muito verdes e com a picância que poucos vegetais têm. Certamente, darão um belo pesto para acompanhar um macarrão caseiro ou para incrementar torradinhas com uma cervejinha gelada para o encontro de final de ano com os filhos.
Reunião que não ocorre há dois anos. Pesto, cerveja gelada e encontro combinam. Ah, se combinam! Sobretudo quando a saudade é de doer. São tantas folhas que também dá para compor uma farofinha com feijão ou vagem refogada. Uma omelete também fica uma delícia com ramas de rabanetes, cenouras ou beterrabas.
O aproveitamento integral dos alimentos aguçou meu olhar para a inteireza, a circularidade. Os mercados criaram o padrão de vegetais sem folhas. A maioria das pessoas desconhece a beleza das ramas. Quiçá, os sabores! Padrões impostos que precisam ser quebrados, pois objetivam incentivar o desperdício e o consumo.
Desperdiçando mais se compra mais. A lógica perversa da economia tradicional – comprar, comprar, comprar. Rabanetes são raízes tipo cenouras. Os meus cresceram tortos, curvos, bifurcados. A falta de chuva contribuiu para que o solo ficasse duro e comprometesse o desenvolvimento – imperfeitos pelos padrões.
Perfeição não é apenas forma. Perfeição também é cor, sabor, consistência, essência. Os padrões de qualidade vigentes exigem ausência de manchas, marcas, rugosidade, ainda tamanho e cor uniformes, dentre outras características.
A busca dessa perfeição tem levado ao crescimento da indústria de agrotóxicos e a crescente liberação destes compostos nos últimos anos no Brasil, vendendo a ideia de produtividade e uniformidade, sacrificando a saúde ambiental e dos consumidores que aderiram a estes padrões sem questionar que veneno não é comida. Veneno mata!
Cresce igualmente a indústria de aditivos químicos que visa realçar e/ou alterar as características dos alimentos remetendo o consumidor às lembranças afetivas e aos padrões de saúde fabricados com único objetivo de atrair ao consumo.
Meus rabanetes foram cultivados apenas com humus e biofertilizante da composteira que eu mesma fiz para destinar os resíduos orgânicos que geramos. Pura saúde e cuidados!
É com este olhar que meus rabanetes tortos servirão para inspirar e aguçar críticas e questionamentos às imposições, aos padrões estabelecidos, à beleza inatingível e utópica que às custas das desigualdades e das frustrações nos mantém reféns de um sistema que não interessa enxergar e aceitar a diversidade, a pluralidade, a liberdade, a autonomia, a saúde, a soberania como valores importantes e essenciais de uma sociedade justa, fraterna e respeitosa.
(*) Marta Tocchetto é Professora Titular aposentada do Departamento de Química da UFSM. É Doutora em Engenharia, na área de Ciência dos Materiais. Foi responsável pela implantação da Coleta Seletiva Solidária na UFSM e ganhadora do Prêmio Pioneiras da Ecologia 2017, concedido pela Assembleia Legislativa gaúcha. Marta Tocchetto, que também é palestrante em diversos eventos nacionais e internacionais, escreve neste espaço às terças-feira
Nota do Editor: a foto (da própria autora do texto) é de rabanetes de sua (dela) horta. Exatamente os que “cresceram tortos, curvos, bifurcados”. E deliciosos, acrescenta o editor que adora rabanetes, de que formato sejam.
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