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Tudo sobre nossas mães – por Bianca Zasso

A colunista e o filme de estreia de Maggie Gyllenhaall, “A filha perdida”

Este texto é composto por um defeito. Já aviso na largada para não correr o risco do prezado leitor fazer alguma reclamação ao chegar na última linha. O problema desta crítica sobre o filme A Filha Perdida, dirigido e roteirizado por Maggie Gyllenhaall e que chegou recentemente à plataforma Netflix, é que quem a escreve não consegue separar público e privado, pessoal e artístico. Um erro crasso de qualquer texto que pretende discorrer sobre uma obra e que quer ser levado à sério.

Explico: não é possível falar sobre esta produção sem fazer associações com a minha própria maternidade e também as alheias. Toda bagagem tem seu peso na hora de analisarmos um filme, isso é certo. Mas aqui a bagagem materna eleva a experiência a outro patamar. E é nisso que mora parte da magia do filme.

Inspirado no romance homônimo da escritora italiana Elena Ferrante, A Filha Perdida começa em clima de mistério. A protagonista, Leda, interpretada por uma inspiradíssima Olivia Colman, caminha cambaleante até a beira do mar e desmaia. Estamos diante de uma trama de crime no litoral? Não, mas só vamos descobrir isso lá adiante.

A professora universitária de férias só quer um pouco de descanso e leitura prazerosa, mas parece que toda a ilha em que está hospedada quer transformar sua folga em confusão. Interna e externa. Isso porque, ao observar uma jovem mãe, Nina (uma também inspirada Dakota Johnson) com sua filha pequena na praia, Leda é arrebatada para lugares profundos.

Os constantes flashbacks que percorrem as duas horas de projeção nos dão uma vaga ideia do motivo. E isso é mais um ponto positivo para Gyllenhaall em sua estreia como cineasta. Dizer algumas linhas tem mais impacto do que revelar todos os segredos. Nesse caso, segredos femininos que nada lembram as machistas visões de outras produções. São dores e mágoas difíceis de explicar, mas bem conhecidas das mulheres. O verdadeiro feminino, nada romântico e delicado.

Ao longo de A Filha Perdida, caminhamos no ritmo ditado por Leda, que tem ares da poesia que ela traduz: bela e potente. Vamos aos poucos descobrindo que ela não é uma mulher querendo recuperar o tempo perdido com a maternidade. Se tal frase pode soar ofensiva para algumas mães, vale ressaltar que muito se perde pelo caminho quando se têm filhos. E isso não é um pecado, mas uma verdade que as propagandas de fraldas quer esconder à qualquer custo.

Leda fala de suas duas filhas, Bianca e Martha, em vários momentos, num tom que equilibra saudade e mágoa. Sua obsessão com a boneca perdida pela filha de Nina parece uma metáfora velha, mas logo entendemos que há muito mais coisas envolvidas naquele brinquedo. A pequena também perdeu sua “filha” e Leda está em busca de um resgate bem mais complexo que uma reconexão com sua prole.

A fotografia, a trilha sonora e principalmente a direção de atrizes são primorosas. A Filha Perdida é um filme de mulheres e para mulheres. Não que o público masculino não capte as intenções das sequências, mas há mensagens escondidas que só quem já arrancou um sutiã apertado no fim do dia ou quis sair correndo sem olhar para trás quando as crianças começam a chorar entende com plenitude.

A jovem Leda, vivida com precisão pela ótima Jessie Buckley, tem um brilho opaco no olhar, uma sede de viver e também um forte conhecimento de sua responsabilidade para com as filhas. Seja nas cenas de brigas ou nas que exalam afeto, a atriz conquista a câmera com segurança.

E por falar em câmera, as escolhas visuais de Gyllenhaal e de sua diretora de fotografia Hélène Louvart não são inovadoras, mas se encaixam com perfeição na proposta do longa. A proximidade dos corpos, as cicatrizes, os monstros que nos habitam aparecendo em closes repletos de significados. 

Fica claro (até demais em alguns momentos, pois os flashbacks são bem tradicionais, quase em contraste com a proposta do restante do filme) que Leda é brilhante em sua vida profissional e parece ter conquistado uma estabilidade financeira e mental. Mas qual foi o preço? Aliás, será que está pago?

Os diálogos certeiros dão conta da inteligência da personagem e também de sua visão ampla sobre o peso que o mundo coloca na maternidade. Vale destacar aqui a personagem Callie, tia de Nina. À espera da primeira filha, ela fala com certo rancor do fato de ter levado 8 anos para engravidar, enquanto sua cunhada conseguiu muito antes.

A cobrança por um filho existe e as mulheres as fazem umas com às outras pelos motivos mais absurdos. Callie será mãe em breve, mas já fala como se tivesse experiência materna de décadas. Chega Leda e destrói sua ilusão de “sempre sonhei ser mãe e me preparei pra isso”. Leda sabe que ninguém em sã consciência do que é criar um ser humano sonha com isso.

É das melhores cenas do filme e dura segundos, assim como a declaração da jovem Leda ao marido que teme ficar sozinha com as filhas quando ele viaja a trabalho. E nestas breves frases que A Filha Perdida conquista até os espectadores mais distraídos.

As escolhas de Leda podem parecer maldosas e até “erradas” para os mais conservadores. Mas quem disse que o erro leva apenas para o pior dos caminhos? Mães que admitem que não é lindo não ter um minuto sem interrupções, que buscam seus sonhos em lugares não tão perto de suas crias, que sentem desejo, medo, raiva e solidão.

Mães que pensam em si mesmas. Mães que “erram”. Mesmo assim, ainda são mães e podem criar boas memórias em seus filhos e filhas. Estas últimas, com certeza, vão crescer sabendo que foi uma mulher real, com suas dores e delícias, que as colocou no mundo. Isso poupa anos de terapia. E dá ao mundo belos filmes.

A Filha Perdida (The lost daughter)

Ano: 2021

Direção: Maggie Gyllenhaal

Disponível na plataforma Netflix

(*) Bianca Zasso, nascida em 1987, em Santa Maria, é jornalista e especialista em cinema pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Cinéfila desde a infância, começou a atuar na pesquisa em 2009. Habitualmente, seus textos podem ser encontrados aqui às quintas-feiras.

Observação do Editor: as fotos que ilustram este texto são de Divulgação.

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