A violência tropical no país tropical – por Leonardo da Rocha Botega
O articulista e o brutal assassinato do jovem congolês Moïse, no Rio de Janeiro
“Mataram meu filho aqui, como matam em meu país”. Essas foram as palavras pronunciadas por Ivana Lay, mãe de Moïse Mugenyi Kabagambe, jovem congolês de 24 anos, brutalmente assassinado na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Moïse havia ido até o Quiosque Tropicália, local onde trabalhava como garçom, cobrar o não pagamento de dois dias de trabalho, R$ 200,00! Foi espancado até a morte por cinco homens. O público, entre uma cervejinha e outra, assistia a tudo, calmamente!
A família de Moïse chegou ao Brasil em 2014, fugindo da interminável guerra étnica que aflige a República Democrática do Congo. O país está entre os que tem o maior número de civis deslocados tanto internamente, como externamente. Toda a família de Ivana Lay foi assassinada nos conflitos que se prolongam há pelo menos duas décadas. O pai e muitos dos parentes de Moïse estão entre os desaparecidos. Conforme a senhora Lay, ela veio para o Brasil em 2014 com os filhos “para ficar calma”.
Segundo o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), o Brasil possuía, até o final de 2020, 57.099 pessoas refugiadas reconhecidas pelo Estado brasileiro. Somente em 2020 haviam sido feitas 28.899 solicitações da condição de refugiado, o CONARE reconheceu 26.577 destas solicitações. Entre os refugiados que solicitaram tal reconhecimento estão venezuelanos, haitianos, cubanos, chineses, angolanos, nigerianos, senegaleses, bengaleses, colombianos, sírios, entre outros.
Ao longo de sua História, o Brasil sempre foi um país receptor de refugiados. Dos conflitos do leste europeu, vieram ucranianos, russos e poloneses; fugidos do antissemitismo e do Holocausto vieram os judeus; das ocupações de seus territórios vieram os palestinos. Entre tantos outros povos que buscaram “a sua calma” no Brasil. Historicamente, o país sempre foi visto pela comunidade internacional como uma democracia multiétnica, um lugar propicio para acolher os refugiados.
Parte desta visão advinha da forma como o Brasil vendia sua imagem para fora e para dentro. A concepção da democracia racial proclamada a partir dos escritos de Gilberto Freyre foi, ao longo de muitas décadas, a narrativa oficial do Brasil. Tão oficial que inclusive a própria Ditadura Salazarista, em Portugal, a utilizava para defender as suas colônias tardias na África. O Brasil era o tal “país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”.
Mas como bem lembra a filósofa Marilena Chauí, por trás de nosso “Mito Fundador” se esconde uma sociedade profundamente autoritária. Uma sociedade que para defender as desigualdades proclama que somos todos iguais, porém o “negro é indolente” e o “indígena é preguiçoso”. Uma sociedade que polemiza a existência das cotas raciais, do Dia da Consciência Negra, que fala em racismo reverso, mas silencia diante do aumento significativo da taxa de homicídios de negros nos últimos dez anos. A chance de um negro morrer no Brasil hoje é três vezes maior do que a de um branco.
O brutal assassinato de Moïse Kabagambe é uma das tantas demonstrações da inexistência do nosso “Mito fundador”. É a excrecência do racismo estrutural de um país onde patrões escravocratas se protegem atrás de capangas e milícias. Onde um negro refugiado do Congo não tem minimamente o direito de receber pelo seu trabalho. Até quando seguiremos assim, tolerando a nossa eterna violência tropical?
(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve no site às quintas-feiras, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).
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