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Fantasmas de vapor – por Márcio Grings

Ela decide que vai parar de fumar. Tem 27, fuma desde os 15. Muito fumaça já foi metida para dentro daqueles pulmões supostamente ainda sadios. Milhares de cigarros fumados em momentos de reflexão, alegria, dor, e as mais diversas situações e recortes instantâneos de vida. E por mais politicamente incorreto que possa parecer, não tem receio em categoricamente afirmar que gosta de fumar, afinal, o pito, até então – é sua companhia mais confiável, uma espécie de amigo sempre disposto a compactuar tudo. Bons e maus momentos. Na alegria e na tristeza, não é assim que deve ser?

“Que se foda o politicamente correto”, pensou. “Por mais que esteja deixando o troço, sim, eu gosto de fumar”, diz em voz alta conversando com seus botões. Só que para uma mulher que ainda não bateu na casa dos 30, mas já ‘tá quase lá, começa a sentir alguns indesejados efeitos da degradação que a nicotina e outras dezenas de substâncias operam no corpo dos fumantes. A pele, o fôlego, as unhas e dentes amarelados, a nhaca do vício, enfim, é como se o próprio demônio cobrasse o preço de um velho pacto. Ou você acha que uma década e pouco de baforadas de prazer não acumulam uma conta a ser paga? E o tempo é muito mais cruel com as mulheres. Pelo somatório disso, resolve parar.

Só que a coisa é bem mais difícil do que se parece. Como sabemos, o cigarro foi até ali uma presença onipresente na vida dela. Depois do café, do almoço, do sexo, no intervalo de um filme, durante a leitura de um livro, ouvindo seus discos, entre uma cerveja e outra, nas madrugadas de insônia, e nas mais variadas situações cotidianas. É preciso entender que a droga do hábito ainda está enraizado. Relembra os gestos, a forma como os dedos elegantemente sustentam o imaculado filete o conduzindo até os lábios. Ah, o prazer causado pelo veneno ao ser distribuído pelo organismo! Pode acreditar, se você nunca se viciou em algo parecido, é indescritível.

Deixar de fumar é como largar uma paixão de toda vida, só que tem um detalhe: esse amor avassalador continua cruzando todos os dias bem na sua frente, piscando o olho e exercendo todo seu charme. E a cada minuto que passa parece que tudo fica mais bonito nele. Como acreditar na existência humana sem verniz e neon? De que forma se pode respirar sem um aditivinho?  “O que os olhos não veem o coração não sente”, não é o que dizem? Pois é, por isso, quando o campo de visão dela é povoado por cenas familiares em todos os lugares fictícios e reais, o coração sente demais. A abstinência é como a saudade do melhor beijo de todos os tempos. E o pior é que ela ainda sente o roçar daqueles lábios e saliva de desejo por uma última longa dose de prazer contínuo. E se cair em tentação, ele volta. Retorna com tudo pronto pra preencher todo o vazio que a toma.

Lembra-se de diversas sensações e visualiza a própria vida como algo indefinido, páginas em branco a serem escritas. Chora. “Vício desgraçado” sussurra chorando. “Que falta eu sinto de ti”, pensa como que confidenciando algo muito íntimo. Lembra-se de uma frase de música que o pai ouvia quando ainda era uma criança: “o homem que não tem vícios é um fraco”, algo assim dizia essa canção.

Acredita ser forte, mas “haja força pra largar”, reflete imaginando uma escadaria quilométrica onde apenas um degrau foi ascendido. Só precisa encontrar outro vício, algo que complemente o lado escuro dentro dela, esse silencioso deserto lunar que aumenta dia a dia. Fica olhando pra lua cheia e almeja que toda aquela luz sopre as nuvens esbranquiçadas para bem longe dali. Sabe que precisa daquele lume, apesar de tudo em volta insinuar lembranças dos saudosos fantasmas de vapor. Desenhos no infinito e nuvens de algodão com sabor de nicotina. Abre a janela do quarto e deixa a umidade invadir o aposento.

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