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O Brasil em Punta Del Este: 60 anos depois – por Leonardo da Rocha Botega

Nos anos que antecederam o Golpe Civil-Militar de 1964, o Brasil vivenciou um momento de grande efervescência política e intelectual. Imerso em seu primeiro experimento de democracia de massas, o país parecia estar diante do espelho, olhando todos os detalhes de sua construção histórica e social. Era preciso arrancar as marcas do seu atraso, colocar-se na marcha do desenvolvimento, superar o subdesenvolvimento, trazer o futuro para o agora. Uma tarefa que não poderia se restringir apenas as questões internas do Brasil. E é aqui que surge uma iniciativa impar na História do país: a Política Externa Independente.

A Política Externa Independente teve seu início no governo Jânio Quadros e se estendeu pelos diferentes momentos do governo João Goulart. Ao longo de pouco mais de quatro anos de implantação teve como responsáveis por sua implantação os ministros Afonso Arinos de Melo Franco (em dois momentos), San Tiago Dantas, Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e João Augusto de Araújo Castro. As bases de sua construção, porém, podem ser encontradas já no governo Juscelino Kubitschek.

O impulso econômico que o Brasil vivenciou com a estratégia de crescer “50 anos em 5”, definida pelo Plano de Metas, aprofundou contradições e trouxe novos desafios. A necessidade de capitais para o financiamento da empreitada, levou a busca de novos parceiros comerciais que além da tradicional aliança com os EUA. Ao mesmo tempo, era necessário ampliar às exportações, buscar o mercado do leste europeu, o mercado chinês e os dos países que emergiam da descolonização da África e da Ásia, sem descuidar da própria vizinhança. Era fundamental o Brasil reencontrar seu espaço em um mundo em rápida transformação.

A partir desta leitura é o Brasil definiu os princípios de sua nova política externa: a autodeterminação dos povos, a não-intervenção, o desenvolvimentismo, a universalização das relações comerciais e a busca da integração latino-americana. Princípios que são colocados em cheque no principal momento de atuação da diplomacia independente brasileira, qual seja, a VIII Reunião de Consulta dos Ministros de Relações Exteriores da OEA, realizada em Punta del Este, Uruguai, entre 22 a 31 de janeiro de 1962.

A Conferência de Punta del Este foi um marco nas História das Relações entre a América Latina e os Estados Unidos. Convocada a pedido da Colômbia (em articulação com o Departamento de Estado estadunidense), tinha como pauta a expulsão de Cuba da OEA a partir de supostas ações incentivadas pelo governo revolucionário visando derrubar governos de outros países latino-americanos. Era a cartada decisiva jogada pelo governo Kennedy diante do fracasso de inúmeras tentativas de desestabilizar a Revolução Cubana. Entre essas a humilhante derrota dos paramilitares treinados pela CIA na Invasão da Baía dos Porcos.

Após despertar apoios de diferentes posições ideológicas por todo o continente, a Revolução Cubana se tornou um tema espinhoso. A declaração de seu caráter socialista por Fidel Castro, em abril de 1961, e sua aproximação com a URSS (em reação aos constantes boicotes econômicos promovidos pelos EUA), transformaram a ilha caribenha em um dos principais focos da Guerra Fria. No Brasil, os anticomunistas ferrenhos aproveitavam a questão cubana para impulsionar suas críticas ao governo João Goulart.

Foi nesse clima que San Tiago Dantas, então chanceler brasileiro, desembarcou no paradisíaco balneário uruguaio que meio ano antes havia sido palco de grandes embates discursivos entre a delegação estadunidense e o revolucionário Ernesto Che Guevara. Apesar das intensas pressões políticas e ofertas econômicas feitas pelo governo Kennedy, o chanceler brasileiro não se curvou. Manteve o tempo todo a defesa do princípio de autodeterminação dos povos, de que o destino de Cuba só pode ser mudado por iniciativa do próprio povo cubano e de que a expulsão de um país dos fóruns da OEA não encontrava legitimidade nos marcos do direito internacional.

Em contraposição a proposta de expulsão de Cuba da OEA, considerada como “atirar a ilha definitivamente nos braços da URSS”, a diplomacia brasileira propôs um marco de relações especiais entre Cuba e os demais países americanos. Era o diálogo contra a força. A proposta não encontrou respaldo. A busca de demonstração de forças dos Estados Unidos falou mais alto. As transações ocultas entre o Departamento de Estado e alguns governos também. A mudança de posição de última hora do Haiti definiu a expulsão cubana.

A Conferência de Punta del Este foi um momento impecável de nossa diplomacia. Um momento onde os princípios deram o tom e a coerência da nação perante o mundo. San Tiago Dantas, que não era nenhum radical, pagou caro pela manutenção desses princípios. Criticado, deixou a chancelaria alguns meses depois. Mesmo assim, acompanhou de perto os custos resultantes da postura de um governo com interesse nacional. Presenciou ativamente o boicote e a desestabilização do governo Jango por parte dos EUA e seus parceiros na política brasileira.

Dantas morreu alguns meses depois do Golpe Civil-Militar de 1964. Não pode assistir à redenção de muitos dos princípios da política externa independente, reafirmados por alguns de seus maiores críticos uma década depois durante o governo Ernesto Geisel. Até mesmo os conservadores, quando realistas, percebem que defender os interesses nacionais vai muito além de fazer bravatas anticomunistas e supostamente patrióticas.

*Leonardo da Rocha Botega, que escreve no site às quintas-feiras, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).

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3 Comentários

  1. Caminhoneiros por conta do passoporte vacinal bloquearam a fronteira entre Canadá e EUA e depois foram para o pais mais ao norte. Premier candadense foi para o twitter e afirmou que eram misóginos, homofobicos, racistas e supremacistas brancos. Havia uma vaquinha na internet para ajudar os caminhoneiros, milhões de dolares americanos. Governo canadense pressionou a empresa e confiscou o dinheiro. Premier canadense afirmou que o proximo passo seriam as contas bancarias dos envolvidos. Do nada surgiram armas e drogas no meio do protesto, existem acusações de que é uma operação ‘false flag’. Alguns ‘correspondentes’ (vi o da JP’) dão toda razão ao governo canadense (nem disfarçam, perderam credibilidade). Resumo da opera é que aqui a midia tem lado, por la a batata do primeiro ministro canadense está assando.

  2. Fim da URSS; Milhões de russos em paises diferentes sem nacionalidade. Bush Pai promete a Gorbachev que a OTAN não iriia expandir para leste. Nada escrito, só palavra. Alemanha Ocidental absorve a Oriental (comunista, mais pobre até hoje) e promete a mesma coisa, OTAN aumentou como consequencia. Final dos 90, caos na Russia, Clinton coloca dois ou tres ex-republicas sovieticas na OTAN. Bush Filho coloca mais meia duzia. Não ficou por ai, invadiu o Iraque onde o governo de minoria Sunita governava um pais majoritariamente Xiita. Ajudou o Ira a se expandir. Deixou os Sauditas p. da cara, que acabaram forçando Obama a se meter numa querra no Iemen. Total zero, desde janeiro Putin condena a histeria da midia ocidental por conta das tropas na fronteira da Ucrania. Noutro dia repetiu, falou que ninguem iria invadir ninguem e falou novamente em histeria. Nem se fala em Slow Joe.

  3. Como sempre parte do contexto fica de fora. Construção de Brasilia, ’50 anos em 5′, neste tempo ninguém roubou dinheiro publico. Financiamento da nova capital federal não desembocou na inflação de quase 90% ao ano em 1964. Golpe de 64 foi muito bem dado. Simplesmente porque a alternativa era muito pior. Tipico governo de esquerda, uma nomenklatura (posição que muitos ainda sonham), uma ditadura de esquerda, uma elite do partido corrupta com tudo do bom e do melhor. Dai a maior cascata dos vermelhinhos, falam em acabar com a ‘desigualdade’. Em todo pais comunista a desigualdade continua, a unica coisa que muda é quem ocupa o ‘andar de cima, a riqueza do pais vai para o ralo (ou algum paraiso fiscal) e o grosso da população passa necessidades. Alguém já viu foto da caderneta de racionamento do Fidel? A ‘falácia’ mais obvio é afirmar que o ‘nacionalismo’ da esquerda (que é só anti-americano) é o mesmo dos milicos. Geisel olhava muito o que De Gaulle fez. Simples assim.

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