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A culpa é dos russos – por Marta Tocchetto

O bode expiatório para o aumento da gasolina, do diesel e do gás

A ausência de políticas públicas que reduzam a desigualdade social e ofereçam segurança também é culpa dos russos?

A Rússia virou bode expiatório para o aumento dos preços da gasolina, do óleo diesel e do gás de cozinha. São grandes produtores e exportadores de petróleo para muitas nações do mundo. Não menos culpada pelas dificuldades para a aquisição de fertilizantes, tendo em vista que os russos são os maiores fornecedores dos insumos para a produção, como o fosfato.

A expressão “bode expiatório”, dizem as enciclopédias, está relacionada às antigas tradições religiosas judaicas, como o Dia da expiação. Escolhidos dois bodes para os rituais, um era sacrificado e outro, o bode expiatório, simbolicamente deveria carregar para longe os pecados da população. O bode, após a cerimônia era levado ao deserto e abandonado, com isso todos os males e os demônios eram afastados do povo.

A expressão, então, passou a representar aquele que carrega a culpa, independente da verdade e da responsabilidade direta. Não quero dizer com isso que a Rússia seja o anjo da história. Muito pelo contrário, basta ver a irracionalidade da guerra contra a Ucrânia. Não há justificativa plausível para aceitar o ato de matar como forma de conquista ou de justiça. É selvagem. É irracional. É diabólico. É desumano.

Bolsonaro, apesar de todas as recomendações que o momento não era para visitas, pois o início da guerra se avizinhava, justificou, em nome da importância dos fertilizantes para o agronegócio, que era urgente estabelecer tratativas com Putin e foi à Rússia contrariando tudo e todos. Estranhamente, pouco ou nada se ouviu na volta da viagem a respeito dos acertos referentes ao tão propalado produto.

De quebra, ainda se intitulou o emissário da paz, mas fracassou mais uma vez. Tanto é que tudo deu em nada, que a guerra está acontecendo e a Ministra da Agricultura recentemente esteve no Canadá para tratar do mesmo assunto, fertilizantes.

Neste ínterim, o pior aconteceu – o famigerado PL 191 que, mesmo afrontando a Constituição Federal, foi aprovado para apreciação pelo Congresso em regime de urgência. A mineração em terras indígenas é uma sentença de extermínio aos povos originais, à derrubada da floresta e ao envenenamento dos rios e das águas.

A mesma ganância que move Putin a avançar sobre a Ucrânia, move Bolsonaro a avançar sobre as terras indígenas. Ao contrário das justificativas para a liberação, as maiores reservas de fosfato estão em Minas Gerais, Sergipe e São Paulo. A Rússia e a guerra foram transformadas em bodes expiatórios para acelerar o projeto ecocida do governo federal.

Justificar a ausência de uma política de preços para o petróleo e para outros derivados que sofra menor influência internacional, bem como a inoperância para reduzir a dependência destes combustíveis é mais uma desculpa esfarrapada na tentativa de encobrir a incapacidade de gestão.

Desde a década de 70 quando se falava na crise do petróleo e que ele podia acabar, a recomendação era a redução da dependência e a necessidade do estabelecimento de uma política nacional energética alternativa, inclusive por uma questão estratégica. Interesses do capital e de políticas corporativistas fizeram naufragar no Brasil, os programas de combustíveis alternativos, como álcool e biodiesel.

O momento atual é mais um recado para diversificar as fontes de energia como hidrogênio verde, fotovoltaica, biomassa e outras. A dependência de uma única fonte, como o petróleo é aceitar o colapso como destino. Se a indústria e os prestadores de serviço sofrem com a alta dos combustíveis, a população mais pobre padece.

O GLP é o principal combustível usado no processamento dos alimentos. Um botijão de gás custar mais do que 100 reais representa um cruel dilema – comida ou gás? Mais uma vez, a desigualdade se aprofunda, pois se falta comida no prato como comprar gás? A alternativa para esta carência tem sido queimar resíduos, em especial, plásticos, papéis e madeira.

O uso de madeira de demolição e de mobiliário passou a ser comum para o cozimento dos alimentos. É assustador, tendo em vista que esta madeira é tratada com conservantes para aumentar a durabilidade, além de conter adesivos e tintas. Estes produtos em sua formulação apresentam diversos compostos tóxicos, como metais e outras substâncias orgânicas cancerígenas.

O uso desta madeira é um grave risco à saúde dos seres vivos e do meio ambiente. Envenenamento! Biodigestores são alternativas viáveis e de baixo custo. Ao mesmo tempo que tratam os resíduos orgânicos, possibilitam o aproveitamento energético do metano que é um dos principais gases de efeito estufa.

Um programa desta natureza pode figurar como uma alternativa para a substituição do gás de cozinha para população de baixa renda. Ao mesmo tempo que é um caminho em direção ao saneamento ambiental, é um passo importante para a segurança alimentar.

A ausência de políticas públicas que reduzam a desigualdade social e ofereçam segurança também é culpa dos russos? Enquanto as escolhas políticas não contemplarem a defesa do meio ambiente e das questões ambientais surgirão políticos e explicações inescrupulosas, fantasiosas e mentirosas para justificar a incompetência, a destruição e a ganância.

(*) Marta Tocchetto é Professora Titular aposentada do Departamento de Química da UFSM. É Doutora em Engenharia, na área de Ciência dos Materiais. Foi responsável pela implantação da Coleta Seletiva Solidária na UFSM e ganhadora do Prêmio Pioneiras da Ecologia 2017, concedido pela Assembleia Legislativa gaúcha. Marta Tocchetto, que também é palestrante em diversos eventos nacionais e internacionais, escreve neste espaço às terças-feiras.

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2 Comentários

  1. Desigualdade social como desculpa para tudo (até para licenciamento ambiental), ‘politicas publicas’ indefinidas e onipotentes como solução para tudo. Mais do mesmo. Em tempo, biodigestor necessita de um certo volume de materia organica para fornecer energia continuamente. Outra fazer adubo com casca de ovo também não fecha a conta. Ovo vem da galinha. Que come milho. Que precisa de fertilizante. Entra no rol das asneiras ‘plantar açai da mais dinheiro do que soja, há artigos cienticos’ (só falta convencer os chineses).

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