Ki-suco e mortadela – por Marcelo Arigony
Cronista em sessão nostalgia, com história das havaianas, do Almir, do fusca…
– Ki-suco e Mortadela!
– O quê?! Disse Almir.
– Fui criado a ki-suco e mortadela. Respondi.
– Hum… lá em Ivorá, nem ki-suco e mortadela. Era leite, pão e queijo no café da manhã, para aguentar a puxada do dia, que começava antes do galo cantar.
– Pois, é… respondi. Nunca se viveu tão bem; quem não teve o ruim, não sabe valorizar o que é o bom.
A vida hoje é muito fácil. Temos tudo à disposição, a preço que podemos pagar. Acho que quase ninguém mais passa fome. E as pessoas nem são gratas por isso.
– Almir riu sozinho. Havia lembrado de algo.
(Almir era parceria de mais de vinte anos; amigo do tipo que não se acha mais por aí. Criado no interior da quarta colônia de imigração italiana, teve que trabalhar no pesado ainda menino).
– Que foi!? Perguntei.
– Lembrei de uma vez que andava de sandálias havaianas novas. Naqueles tempos de andar descalço na roça, havaianas era calçado de domingo; vestimenta de ir na missa. Não havia essas sandálias de outras marcas. Havaianas, só originais! Naquela época, andar de havaianas novas causava frisson nas moças da redondeza. E seguiu rindo.
Mas afinal, do que tanto ris, vivente?!
– Uma vez – respondeu ele – ganhei um par de chinelas novas. Caminhava garboso com aquele calçado pela colônia. Mal comparando, era quase como andar de carro novo nos dias de hoje. Bem… faceiro e calçado, encontrei algumas meninas na praça do centro da cidade e pensei: vou fazer o maior grau. Inflei bem o peito, levantei o queixo e avancei irrompendo na praça da cidade. E não é que me escapa uma alça do chinelo. Que mico! Acho que as hoje moças velhas riem até agora.
– E a bicicleta?! Disse eu. Quando de bicicleta nova, passeando pra me mostrar às gurias, pedalava forte e ouvia um craaaaac. Tinha escapado a correia. Descer e empurrar, saindo de fininho. Que baita mico. Pois é… acontecia.
E depois, já rapazote, empurrar um fusca velho. Quem não viveu isso?! O que podia ser pior do que ter de empurrar um fusca velho, com todos passando, abanando e buzinando? Que indignidade! Os carros de hoje já nem estragam mais. É botar gasolina e andar, se tiver dinheiro. Enfim, o carro hoje é um bem sem expressão sentimental nas nossas vidas.
Pena que isso tenha tirado o glamour, a paixão de passar toda a tarde de sábado lavando e encerando para sair na noite e passear no chimarródromo da cidade domingo à tarde. Isso se perdeu num passado bem recente. E eu gostava tanto do meu fusca. Hoje nem ligo mais…
Pois é. Fui criado a Ki-suco e mortadela. Fruta, era laranja; às vezes banana e maçã. Hoje tem quivi, carambola, manga, caju, uva de dama e tudo o que quiser, de qualquer lugar do mundo, ao alcance da mão e do bolso em qualquer mercearia de esquina.
Eram as dificuldades da vida simples de poucos anos atrás. É incrível ver como a vida mudou tão depressa. Ainda nem nos adaptamos a tudo que esse admirável mundo novo está nos proporcionando. Nem Julio Verne teria sonhado… E imagine o que o porvir vai nos mostrar. Quem viver verá…
(*) Marcelo Mendes Arigony é titular da 2ª Delegacia de Polícia Civil em Santa Maria, professor de Direito Penal na Ulbra/SM e Doutor em Administração pela UFSM. Ele escreve no site às quartas-feiras.
Nota do editor. A foto (sem autoria determinada) que ilustra esta crônica é uma reprodução obtida na internet.
Mortadela! Sabia! Comunista!
Nascida e criada em Ivorá, devo dizer que mortadela , embora nunca tenha sido fã, era um luxo, assim como o ki_suco, este sim gostoso e cinsumido nos finais de semana. Era polenta mesmo, todos os dias. E era uma delícia, com queijo, “fortaia”, o nosso tradicional omelete, salame ou mesmo “radice” refogada com ovos mexidos. Uma delícia! E crescíamos fortes e saudáveis. Sem frescura!