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Por acaso – por Orlando Fonseca

E tudo após “digressão sobre sorte, azar, harmonia das esferas…”

Por acaso, o número que aparecia no relógio digital do carro coincidiu com algo que conversávamos.  Como de costume, o bate-papo com minha filha, durante os trajetos em que a levo de um lugar a outro pela cidade, sempre rende surpresas.

Como é muito observadora, ela notou a coincidência dos números, e começamos a falar sobre situações que, para ela, deram certo, por isso comportavam um sentido simbólico oculto. Ou seja, me assegurava, aquilo só podia querer dizer alguma coisa.

Como esbocei um ar de descrédito, ela insistiu sobre as íntimas correlações que podem comportar a simultaneidade, o desenrolar de sincronias nem sempre percebidas pela gente, claro, que, sem essas palavras complicadas com que faço o relato.

Depois de uma digressão sobre sorte, azar, harmonia das esferas (algo que tem a ver com filósofos e matemáticos da antiga Grécia, entre os quais Pitágoras, que não coloquei naquele papo descontraído, lógico), para falar sobre efeitos do acaso, falei que tudo isso era apenas coincidência. Algo que acontece trocentas vezes ao longo de um dia, e nem notamos.

Os ponteiros do relógio – quase nem vemos mais esse tipo de coisa – se sobrepõem diversas vezes num lapso de 24 horas. Não quer dizer nada que o flagremos nessa posição quando isso ocorre.

Pode até acontecer de, neste junto momento, a gente ouvir uma música, deixar cair um talher no chão, alguém tocar a campainha da porta. Mas podem ter acontecido coisas nas outras 43 vezes em que isso se deu, ao longo de um dia, e não relacionamos com nada.

Fatos do cotidiano, os quais, pela repetição, não nos provocam, se sucedem no âmbito da normalidade. Basta que uma divergência ou convergência ocorram para que passemos a suspeitar de algo sobrenatural, ou alguma capacidade de nossa mente em programar a realidade ou o futuro.

Para especialistas em psicologia humana, isso se chama “ilusão de controle”. Imaginamos, para nosso conforto, que usando determinada roupa (ou deixando de usar) podemos influenciar no resultado do jogo de nosso time favorito, por exemplo. Isso porque, em determinada ocasião, ao fazê-lo, nossos atacantes fizeram três gols e nos classificamos.

Para o poeta parnasiano francês, Théophile Gautier, o “acaso é, talvez, o pseudônimo que Deus usa quando não quer assinar suas obras”. Vai daí que os Titãs cantavam: “O acaso vai me proteger enquanto eu andar distraído.”

Quando andamos atentos, apercebidos das coisas, inclusive, é quando descobrimos a tal da “harmonia das esferas”, a conjunção cósmica capaz de dar sentido a ocorrências inusitadas.

Nesse caso, até chegamos à conclusão de que podemos afrontar o desconhecido e descobrir saídas onde as circunstâncias são adversas. Para as outras situações, deixamos ao acaso o compromisso de nos proteger.

O lado perverso desse expediente é a sensação de que estamos seguros, quando deveríamos ter cautela. Muita gente saiu às ruas sem máscara, sem tomar cuidado de manter distanciamento ou usar álcool gel. E isso ainda quando os índices da Covid estavam no pico, de contágios e óbitos, no entanto, não pegaram a Covid.

Com o tempo, essas pessoas passaram a se sentir seguras, pelo número de vezes em que foram para a rua, pelo tempo de exposição sem maiores consequências. Já no meu caso, somente após as três doses de vacina, e um bom lapso de tempo após, é que me senti seguro para deixar a máscara de lado, em ambientes abertos.

O vírus não conhece estatística. Já disse que só vou pegar a Covid por engano. Ela que me pegue distraído, porque de outro modo não vai se apossar desse corpo que não lhe pertence. Graças aos cuidados extremos, há mais de dois anos, e cheio de escrúpulos.

Se, por um lado, imagino que estamos aqui por efeito de um “Destino”, não quero ser tão somente resultado de um acaso; por outro, luto contra a noção de que, ao final da jornada, passei por aqui ao acaso.

Minha filha vai ter de levar adiante algum legado, nem que seja a crença de que precisamos ir além das aparências, e que nem toda coincidência comporta a essência do que devemos ser. E isso não é sorte ou azar, isso é um programa de bem viver.

(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

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3 Comentários

  1. Richard Feynman, ganhador do Nobel e figuraça, participou da investigação do acidente da Chalenger. Tretas muitas, suas conclusões foram parar num anexo do relatorio final. Administração da NASA calculou a probabilidade de acidente/falha catastrofica como sendo uma em cem mil. O fisico acho completamente irrealista. Descobriu que os engenheiros da propria NASA, nas catacumbas da empresa, calcularam como sendo uma em duzentos. Resumo da opera vem da Torah. ‘Não te esponhas desnecessariamente ao perigo; pode ser que um milagre não te salve’.

    1. Torah não, Talmud. Criatura vai ficando velha e confunde alhos com bugalhos. Compromisso com erro é burrice.

  2. Lembra o livro Sincronicidade escrito por Jung e pelo fisico Wolfgang Pauli. Coincidencias significativas. Um paciente no divã falando com o psicanalista relata o sonho com um escaravelho e o descreve. Um barulho insistente, uma batida na janela, chama atenção do psicanalista.. Ele vai até lá e volta com algo na mão. E o besouro do sonho do paciente. Lembra o livro Iludidos pelo Acaso de Nassim Taleb. Um bilionario oferece um milhão de dolares para que um jovem pratique roleta russa uma unica vez. Chance uma em seis, como um dado. O revolver não dispara e ele fica com o dinheiro. Pessoas normais comportam-se na vida como se fizessem roleta russa com um revolver com dezenas de milhares de balas. Assumem riscos sem saber, puxam o gatilho muitas vezes cotidianamente e até esquecem que a munição está la.

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