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A “indiferença maternal” e as amas-de-leite nas cartas da esposa do morgado de Mateus – por Elen Biguelini

A historiadora Elizabeth Badinter tem uma obra controversa, ao demonstrar um claro viés feminista em sua obra. No entanto, “O amor incerto: história do amor maternal do século XVII ao século XX” é essencial ao estudo da história da maternidade, isto porque fala de temas que até então eram ignorados pela historiografia: o que era ser mãe ao longo da história.

Neste livro, um de seus capítulos é intitulado “A indiferença maternal”. Parece ser um tema chocante, mas é muito mais complexo do que seu título infere. A autora pergunta: “como seria possível as pessoas interessarem-se por um pequeno ser que tinha tantas probabilidades de morrer antes do ano?” (BADINTER, 2000, 81). É preciso lembrar que antes dos avanços da medicina que possibilitaram a diminuição da mortalidade infantil, muitas crianças não sobreviviam ao primeiro ano (ou ainda mês) de vida.

Mas isso não significa que suas mães não se apegassem as crianças. A verdadeira “indiferença” maternal se dá devido as próprias fontes utilizadas pela historiografia até então. Como considerar verdadeiramente o sentimento familiar e maternal quando a fonte era a Igreja (registros de batismo, nascimento e casamento) ou jurídicas. Sem opiniões verdadeiras das mulheres, nada se pode verdadeiramente inferir sobre o sentimento feminino.

Mas até então, eram muito poucas as mulheres que podiam deixar suas expressões no papel. Christine de Pizan foi uma das poucas senhoras medievais que escreveram (não apenas poesia, como no caso desta autora, verdadeiros tratados políticos).

Com o advento da Idade Contemporânea e, ainda antes, dos salões, algumas senhoras da elite passaram a ter acesso as letras e puderam expressar-se sobre o assunto. Ainda assim, a maternidade era tema tabu, tratado apenas privadamente. Isto é peculiar quando considerado que era esta a única função atribuída às mulheres na sociedade. Elas só ”serviam” para procriar, mas tudo que se relacionasse ao ato físico de dar a luz, cuidar dos bebês, etc, era tabu.

D. Leonor de Portugal (1722-1789) foi casada com o morgado de Mateus, D. Luís António de Sousa Botelho Mourão, (1722-1781), que foi Governador da Capitania de São Paulo durante 10 anos. Durante este período, o casal viveu separado. Ele no Brasil, ela em Portugal. Assim, é através de cartas que o progresso dos filhos é tratado.

A morte de uma destas crianças é, então, tomado em uma destas cartas: “adoeceu Francisca e morreu, além de filha, a mais linda e discreta e habilidosa menina que eu vi cuja saudade me não pode passar desejando se trocasse em agradecimentos a meu Senhor da fortuna que logre para que não posso mais continuar sem lágrimas” (BELLOTO, 2007, Carta 129).

Imagina-se que em uma missiva na qual o pai será informado do óbito de sua filha, a mãe colocaria mais informações. No entanto, é apenas assim que é tratado o assunto. Claramente, é possível que outras cartas tenham sido escritas para o marido, ou para outras figuras da família, que podem vir a ter se perdido. As cartas frequentemente mencionam a dificuldade em receber missivas no e do Brasil. Assim, por meio das cartas escritas por sua mulher e guardadas pelo morgado, é possível criar apenas uma imagem fracionada dos reais acontecimentos e sentimentos.

O assunto só é novamente retomado em uma segunda carta, na qual sua autora demonstra o medo de que os mesmos médicos que erraram com sua filha, cometam o mesmo erro novamente. “Como Francisca tinha ido para o céu não quis chamar nenhum médico de Lisboa”. (BELLOTO, 2007, Carta 131).

O aparente “descaso” com a criança – ao não mencioná-la – pode também ser compreendido como uma dor extrema. Outra razão para que a autora não comente o assunto poderia ser a relação entre falar de sentimentos e a suposta ‘fragilidade feminina’ que impedia que mulheres fossem chefes de família – o que a própria esposa do morgado era, ativamente, ao assumir todas as funções relacionadas ao morgadio durante a estadia de seu marido no Brasil.

Outro assunto que é tratado nestas cartas é a escolha de uma ama-de-leite.

O grande historiador da história da família, Edward Shorter, relaciona o inicio de um interesse materno em amamentar seus filhos – nota-se, aqui, que tratamos de elites, não de classes populares, nas quais o aleitamento materno era a única opção – e uma mudança quanto ao amor maternal com um desejo de privacidade. A intimidade é o que modifica diversos padrões sociais durante o século XIX. A mudança da família tronco para a família nuclear (podemos tratar deste assunto em momento posterior), a mudança da distribuição das peças do lar, da relação com os criados e até mesmo com a cidade, são todos consequência desta mudança de paradigma. As famílias passavam a olhar para si próprias e seu próprio interior. Logo, a maior quantidade de tempo e relacionamento entre mãe e filhos é um passo esperado.

Mas o período em que viveram o morgado de Mateus e sua esposa ainda não apresentava tais mudanças na alta fidalguia portuguesa. Logo, utilizam amas de leite.

Ainda no inicio do casamento, quando a relação do casal ainda era amigável (tiveram uma separação – de corpos – conturbada após o retorno do morgado à Portugal), o casal trocou cartas quando o jovem marido precisou defender uma cidade próximo a fronteira norte do país.

Em carta de 1758, D. Leonor lembra ao marido “se totalmente quer a ama, que a mande a tempo de descansar do caminho por amor do leite, e avise-me para despedir-me as outras de Rechião.” (BELLOTO, 2007, Carta 5). Nota-se que era uma escolha do casal. Ele optara por procurar uma ama na localidade em que estava, enquanto D. Leonor procurava em outro local. Continua, em outra missiva, mencionando aquela que seria posteriormente contratada: “a monja”: “bem sabe sempre gostei da monja e conheço as suas boas circunstâncias” (BELLOTO, 2007, Carta 6). A questão era, para a esposa do morgado, de extrema importância, pois “não é justo que se Deus não fizer o grande favor de nascer sem defeito por nossa culpa o tenha” (BELLOTO, 2007, Carta 6).

Claramente, este medo de D. Leonor é um preconceito da época. Sabemos hoje que o leite materno é completo e o único alimento verdadeiramente ideal para os bebês.

Mas esta senhora vivia em uma época na qual superstições eram elevadas à nível de ciência e preconceitos eram utilizados na formulação da própria ciência. Logo, o temor de D. Leonor, que para nós parece incompreensível, se justifica através de seu contexto histórico. A autora afirma ainda em outra missiva: “a monja era boa mas como tem um jeito em um olho não serve que é muito perigoso para crianças que fazem o mesmo que vêem” (BELLOTO, 2007, Carta 9).

Até mesmo os atributos físicos eram considerados, visto que se compreendia que a criança poderia herdar características da ama.

Este preconceito é ainda mais marcante na frase: “não se esqueça da ama que não tenha nada nem de judia nem de mulata que é muito preciso estas circunstâncias” (BELLOTO, 2007, Carta 7).

Muito longe de termos exaurido o assunto, continuaremos a série através das cartas de outra senhora portuguesa, no qual a maternidade e, em especial, as técnicas de alimentação para os infantes, são tratadas com afinco.

BELLOTO, Heloisa Liberalli. Nem o tempo, nem a distância: Correspondência entre o Morgado de Mateus e sua mulher, D. Leonor de Portugal (1757-1798): Lisboa. Aletheia Editores, 2007.
BADINTER, Elisabeth. O amor incerto. História do amor maternal do sec XVII ao secXIX. Lisboa: Relogio d’agua, 2000.
SHORTER, Edward. A formação da família moderna. Lisboa: Terramar, 1995.

(*) Elen Biguelini é doutora em História (Universidade de Coimbra, 2017) e Mestre em Estudos Feministas (Universidade de Coimbra, 2012), tendo como foco a pesquisa na história das mulheres e da autoria feminina durante o século XIX. Ela escreve semanalmente aos domingos, no Site.

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