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Pelica, Cevadinha e Leite de Vaca. As formas utilizadas no século XIX para substituir o leite materno – por Elen Biguelini

Continuando a temática sobre a qual já temos decorrido nas últimas semanas, apresentaremos hoje as cartas da condessa de Alva, D. Mariana de Sousa Holstein (1784-1829), para sua irmã Teresa. Nestas, encontramos um “insight” a vida cotidiana da feminilidade oitocentista, bem como uma descrição detalhada da forma como ela tratava de seus filhos.

As cartas foram escritas entre os anos de 1814 e 1819, e tratam de toda uma larga gama de assuntos, desde acontecimentos políticos até os mais corriqueiros acontecimentos de seu dia-a-dia, do tratado do lar e dos filhos. Estas missivas foram publicadas por António Ventura na obra “Um Olhar Feminino sobre Portugal” em 2006  e são uma fonte verdadeiramente rica para os estudos da vida doméstica.

Estas cartas foram escolhidas aqui devido a um tema em específico, que se figura entre as palavras de D. Mariana: a tentativa de substituir o uso de uma ama-de-leite.

No período da troca de informações entre estas duas irmãs, ambas eram mães de filhos pequenos e, frequentemente, estavam novamente grávidas. Assim, não é estranho que o tema da maternidade e do aleitamento seja recorrente. Apesar do fato de que estes assuntos não eram discutidos abertamente, o simples fato de serem cartas trocadas entre duas irmãs, permite que o assunto seja discutido de forma mais aberta. O tema que seria impossível de ser ouvido nos salões ou mesmo durante as visitas, podia ser discutido abertamente entre as duas mulheres da mesma familia, em uma correspondência privada e pessoal.

Em maio de 1816 afirma que sua filha Isabel “A Isabel já secou duas mamas” (HOULSTEIN, 2006, 130), e estava “sustentando-se com as esmolas da ama Joaquina que por duas vezes a tem livrado de morrer de fome” (HOULSTEIN, 2006, 130). Ou seja, com diversos filhos em casa, a condessa empregava mais de uma ama-de-leite, que ficavam em sua moradia enquanto tinham leite. Findo o alimento, a criança movia-se para outra ama-de-leite.

Nota-se que na mesma missive a mãe afirma “[s]uponha o que eu me terei consumido. A pequena é muito delicada mas não doente” (HOULSTEIN, 2006, 131). Não podemos afirmar com total certeza que esta senhora não se refira ao se “consumido” na forma física. Mas o simples fato de que ela teve que ‘consumir’ o leite da ama de um de seus irmãos indica que sua mãe se refere ao que hoje referiríamos estresse referente ao cuidado da menina, e não com a atividade física de amamentar.

Mas as missivas de D. Mariana tratam o assunto com ainda mais força porque, quando um de seus filhos bebês vem a falecer, a autora percebeu que teria sido o descuidado da ama a causa deste óbito. Segue, abaixo, o relato desta senhora:

“…faltar-lhe quase o leite por fim e calar-se e ainda em cima mostrar má cara quando por fim o médico se lembrou que a mudança de leite talvez fizesse algum bem ao pequeno. (…) , dizendo ao princípio que o pequeno não tinha nada, não querendo mugir o leite que ele não mamava e depois apresentando-se com peles vazias para o estafar a puxar, não se querendo despir e dormindo vestida como uma porca, escabeciando sobre a criança quase defunta. Na penúltima noite de sua vida, depois de grandes esforços parar mamar poucas gotas – pois ele então puxava muito bem com a força da convulsão – tornou-se a deitar no seu chiqueiro e a roncar logo, e a pobre criança estafada do trabalho caiu numa terrível convulsão revirando de todo os braços que parecia ter o estômago e peito nas costas” (HOLSTEIN, 2006, 94).

Segundo estas palavras, a pobre criança havia falecido de fome, apesar de ter uma ama-de-leite própria. A partir desta data, D. Mariana passa a temer que o evento voltasse a ocorrer e, então, procura métodos para substituir o uso da ama (nota-se que ela própria amamentar não fora considerado, visto ser inaceitável entre as suas contemporâneas portuguesas).

Assim, a autora seguiu os concelhos de um ilustre médico lisboeta, que lhe recomendou que era  “muito mais conveniente criar uma criança com leite de animais do que dá-lo a uma ama levemente duvidosa” (HOULSTEIN, 2006, 100).

Ela encontrou, então, métodos variantes: um era a mistura do leite de vaca com água para os recém nascidos e após o primeiro mês: “se a criança é forte e regular nas suas operações mistura-se com o leite uma geleia de cevadinha de França” (HOULSTEIN, 2006, 100). Ela aprova do método e chega a enviar não apenas a receita de ‘geleia de cevadinha’ (o que presumimos ser algo como sementes de chia), garrafas de vidro no qual o material deve ser depositado e uma “pelica pela qual a criança recebe o leite” (HOULSTEN, 2006, 100). Observamos aí os primórdios da mamadeira.

Ao fim, assim como a senhora sobre a qual discorremos na semana anterior, optou pelo uso de uma ama-de-leite confiável. Mas, claramente, questionou mais ferozmente a escolhida para o trabalho.

Finalizamos esta terceira parte lembrando que, ao contrário da condessa de Alva, muitas mulheres não têm a opção de amamentar ou não. São diversas as situações que impedem uma mulher de amamentar seus filhos. Desde a falta de leite ou uma cirurgia prévia, até a chegada de uma nova gravidez. Assim, enquanto a condessa seguia uma tradição de sua sociedade, as mulheres de hoje sofrem com os preconceitos impostos pela nossa.  Infelizmente, existem ainda muitos mitos relacionados a amamentação.

Na próxima semana, traremos novamente o tema das amas-de-leite negras e escravizadas, retornando à questão ao Brasil.

Fonte:

Holstein, Mariana de Sousa (2006). Um olhar feminino sobre portugal. D. Mariana de Sousa Holstein. Condessa de Alva. Cartas a sua irmã Teresa (1814-1819). Introdução e notas António Ventura. Lisboa. Livro Horizonte.

(*) Elen Biguelini é doutora em História (Universidade de Coimbra, 2017) e Mestre em Estudos Feministas (Universidade de Coimbra, 2012), tendo como foco a pesquisa na história das mulheres e da autoria feminina durante o século XIX. Ela escreve semanalmente aos domingos, no Site.

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