O dia em que o futebol brasileiro perdeu a sua alma – por Leonardo da Rocha Botega
“O Tetra não veio da beleza; viria doze anos depois com o pragmatismo"
Dia 5 de julho de 1982 o país amanhecia radiante, esperançoso. Parecia pouco se importar com a inflação de 7,10% no acumulado mensal e de 101,64% no acumulado anual. Parecia pouco se importar também com a taxa de desemprego que havia fechado no ano de 1981 em 7,9%. A esperança de que o desastre que se vivenciava nos últimos anos da Ditadura Civil-Militar estava chegando ao fim falava mais forte.
O perigo dos retrocessos autoritários estava presente, porém não com a mesma intensidade verificada até o atentado do Riocentro. A extrema-direita militar perdia terreno para um acuado general-presidente, João Figueiredo, que prometia o restabelecimento da democracia, nem que para isso precisasse “prender e arrebentar” os contrários. Não precisou! Os contrários costuravam nos bastidores o acordo da não punição dos criminosos do Estado.
Nesse clima, embalados pelos bêbados e equilibristas que formulavam uma saída honrosa e forjavam uma reestruturação do país conduzida pelo andar de cima, os brasileiros e as brasileiras cantavam “voa canarinho voa, mostra para Espanha o que eu já sei”. Zico, Sócrates, Júnior, Éder, Leandro, Falcão e cia de fato estavam mostrando na Espanha o que já se sabia: o Brasil vivia tempos de esperança!
Naqueles anos da saideira cambaleante dos ditadores fardados, a Copa do Mundo tinha um significado otimista. Pela primeira vez, desde o Tricampeonato de 1970, uma seleção jogava bonito e encantava. Porém, desta vez não corríamos o risco da instrumentalização dessa beleza em prol da ilusão de um Milagre Econômico que aconteceu para poucos. Não se cantava a marcha do “Pra Frente Brasil”. Foi o samba no pé que comandou a virada contra a União Soviética, as goleadas contra a Escócia e a Nova Zelândia, e a vingança pelo “campeonato moral de 1978” contra a Argentina de Maradona.
Tudo parecia fluir naquela manhã onde os brasileiros estufavam o peito e cantavam uma vitória que parecia certa contra uma seleção italiana que na primeira fase havia empatado seus três jogos e que dias antes haviam vencido a Argentina com um apertado 2×1. Os canarinhos estavam voando. Infelizmente, o voo da esperança não foi suficiente! Três vaciladas e um vilão, Paolo Rossi. A esperança, que ganhou vida num primeiro momento no gol de Sócrates e depois na obra-prima futebolística de Falcão, se apagou no último minuto do jogo, quando o goleiro italiano Zoff defendeu quase em cima da linha a cabeçada do zagueiro Oscar. Aquela defesa foi um tiro de misericórdia na alma do futebol brasileiro: a beleza.
Naquela tarde do Sarriaço o Brasil chorou! Essa mesma nação choraria quase dois anos depois com a negativa das oligarquias que dominavam a política ao seu desejo de eleger de forma direta o novo presidente. Choraria no 21 de abril de 1985, feriado de Tiradentes, a morte de Tancredo Neves, presidente eleito indiretamente, o equilibrista da travessia do Brasil rumo a redemocratização.
O Tetra não veio da beleza, viria doze anos depois com o pragmatismo. A democracia também não, apesar da beleza do Movimento Diretas Já foi o pragmatismo que garantiu uma saída pelo alto. O mesmo pragmatismo que criou o Centrão. Que transformou a seleção brasileira em um conjunto de fantoches de empresários. Jogadores sem alma, sem a coragem e o brilhantismo de um Sócrates, gigante dentro e fora de campo.
Chega de pragmatismo! É de beleza que precisamos! Somente a beleza é que irá reconstruir esse país tomado pelas viúvas da ditadura. Somente a beleza é que não irá mais fazer o povo brasileiro dormir, seja assistindo um futebol que pouco nos empolga na televisão, seja assistindo as milícias desesperadas para não perder o poder.
(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve no site às quintas-feiras, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).
Nota do Editor.A foto (sem autoria determinada) da comemoração do italiano Rossi, na chamada “tragédia do Sarriá”, o então estádio (depois seria demolido) do Barcelona, é uma reprodução obtida na internet. Você pode encontrar a imagem, por exemplo, AQUI.
Salve Leonardo, belo texto em que pensa futebol, arte e política. A seleção de 1982 e, de modo particular o jogo contra a Itália, marcam o último momento da minha vida em que sofri pela seleção brasileira.