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A declaração dos direitos das mulheres de Olympe de Gouges – por Elen Biguelini

Continuando a temática do último artigo, falaremos hoje do texto de Olympe de Gouges que marca tanto a história das mulheres e do movimento feminista.

Este texto não é grande. São apenas alguns artigos que unidos transformam a forma como podemos observar a História das Mulheres. Isto porque, durante muito tempo elas foram apagadas da historiografia, surgindo como figuras inertes que apareciam apenas como adereço para figuras masculinas.

Mas o que o texto de Gouges prova, sem sombra de dúvidas, é que as mulheres tinham voz e desejavam ter ainda mais voz. Prova que elas também lutavam por seus direitos, ainda que em uma sociedade que as excluía de diversas formas.

“Homem, és capaz de ser justo?” É a primeira pergunta que coloca a precursora do feminismo. Sabemos que sim, os homens são capazes de ser justos, não apenas para com as mulheres mas para com todas as diferenças. É a sociedade, o patriarcado, e a insistência da superioridade heteronormativa, cis, branca e masculina que não é justa.

“Diz-me, o que te dá poder soberano para oprimir o meu sexo? A tua força? Os teus talentos?” Não, pois a mulher também tem força, também tem talentos. A autora levanta, então, a ironia que impõe esta suposta superioridade.

Após esta inicial pergunta aos homens que escreveram os direitos “universais” mas unicamente masculinos, a autora inicia sua Declaração de Direitos se voltando para as mulheres.

Ela afirma sua certeza de que “o escárnio pelos direitos da mulher são as únicas causas dos infortúnios públicos e da corrupção dos governos”. Ou seja, se às mulheres tivessem sido permitidos os mesmos direitos – inclusivamente políticos – possivelmente os governos seriam mais justos. Ela afirma que as mulheres são superiores na beleza e também “na coragem durante o sofrimento da maternidade”.

Assim, começam os artigos (aqui escolhidos, reduzidos e comentados)

Artigo 1. “A mulher nasceu livre e igual ao homem nos seus direitos”. Assim, os direitos são iguais e não podem ser vistas como inferiores.

Artigo 2. Elas têm o direito a “liberdade, a propriedade e a segurança” assim como todos os homens.

Artigo 3. A soberania da nação reside na “união da mulher e do homem.” Ambos, homens e mulheres completam a nação, ela não é composta por apenas um sexo.

Artigo 6. “As leis devem ser a expressão da vontade geral” de cidadãos e cidadãs. Ou seja, não apenas os desejos masculinos devem se tornar lei. Este princípio é o que levou, por exemplo, à luta pelos direitos materno, da licença maternidade, etc.

Artigo 7. “Nenhuma mulher é exceção: e acusada, presa e detida nos casos determinados pela lei.” Se as mulheres são iguais em direitos, também o são em deveres e devem seguir as leis do país.

Artigo 10. “A mulher tem o direito de subir ao cadafalso: deve também o direito de subir à tribuna”. Ou seja, se ela tem direitos e deveres, também pode ter voz e se candidatar a cargos políticos, assim como expor seus desejos, necessidades e opiniões de forma pública.

Artigo 11. Refere-se ao direito de reconhecer livremente seus filhos e os pais de seus filhos. “Assim, qualquer cidadã pode dizer livremente: sou mãe de uma criança que pertence a este homem, sem ser forçada por um preconceito bárbaro a esconder a verdade”.

Artigo 13. “Ela partilha todas as servidões e todas as tarefas penosas; portanto, deve ter a mesma participação na distribuição de posições, empregos, cargos honras e indústrias”. Neste artigo, percebe-se que a luta pela paridade de salários é antiga, e que as mulheres sempre trabalharam (tema já por nós tratado nesta coluna).

Artigo 17. “A propriedade pertence a ambos os sexos”. Este ponto já foi mencionado no artigo 2º, mas garante justamente algo que em algumas sociedades não era aceito para as mulheres. Um exemplo facilmente compreendido é o caso da família Bennet em “Orgulho e Preconceito”, de Jane Austen. Nesta obra, as cinco filhas da família não têm direito à posse de Longbourn, que seria herdado por um primo distante. Felizmente, nem todas as nações não permitiam a posse as mulheres, sendo que as portuguesas podiam herdar terras, mas esta reclamação demonstra a necessidade de permitir que a mulher cuide economicamente daquilo que é seu, e que efetivamente possa “ter” aquilo que é seu.

São 17 os artigos da declaração, que finaliza com um “Post-scriptum” no qual sua autora clama para que as suas contemporâneas passem a perceber sua posição de subalternidade e lutem por seus direitos.

“Mulher, desperta; ouve-se em todo o universo o chamamento da razão; descobre os teus direitos”. Afirma ainda, “[t]endo-se tornado livre, [o homem] tornou-se injusto para com a sua companheira.” E isto não deveria mais ser aceito.

Ela lembra que o governo francês também precisou do governo feminino de forma oculta. Ela não descreve a frase “´Por traz de um grande homem existe sempre uma grande mulher”, mas afirma essencialmente isto. Sem as mulheres silenciosamente auxiliando, a política francesa não seria a mesma. Não é à toa que existe todo um ramo de pesquisa relacionado aos poderes exercidos pelas mulheres na política, de forma “indireta” – o chamado queenship (sobre o qual poderemos decorrer mais a fundo em outra ocasião)

Ela segue colocando diversas ocasiões em que a sociedade foi injusta para com as mulheres, desde a de uma mulher que vende seu corpo a um homem, seu senhor, que ao receber sua “liberdade” (termo da autora) não tem direitos e fica desamparada: “que acontecerá a essa infeliz mulher?”. E ainda outro caso, de uma mulher seduzida, que abandona sua família por um sentimento, mas que é logo abandonada por aquele que amava, ficando a mercê da sociedade que a excluía. Ou ainda as mulheres da alta sociedade que têm como única função ser vista publicamente como forma de demonstrar seu talento para a música e ou pintura – ou seja, nunca sua mente.

Gouges afirma: “a mulher solteira só tem um débil direito; leis antigas e dessumas recusam-lhe o direito de dar aos seus filhos o nome e a riqueza do pai”. Fica assim, desamparada, não tem direitos. É esta a razão da inclusão do artigo 11, no qual a autora requer às mulheres o direito de nomear os pais de seus filhos, para que estes tenham os direitos relacionados a sua paternidade e que não fiquem desamparados, ainda que seu progenitor homem fosse casado. Assim, insere em seu texto um modelo de contrato a ser firmado por homens e mulheres para o casamento, no qual ambos afirmam a propriedade mútua, “pertencente diretamente aos nossos filhos”; a divisão da riqueza em caso de separação.

Reclama também a necessidade de auxílio às jovens e viúvas enganadas pelos homens, assim como uma regeneração para as prostitutas (que, segundo a autora, não são “quem contribui mais para a depravação da moral”, mas que ao se regenerarem irão auxiliar na melhor da moral de toda a sociedade).

Propõe que as mulheres possam participar “em todas as atividades do homem”, visto que assim, o “preconceito cai, a moral é purificada e a natureza retoma os seus direitos.”
Ela finaliza falando de política, afirmando que os poderes executivos e legislativo deveriam se unir, assim como os homens e as mulheres, ambos “iguais na força e na virtude”, para constituírem um bom lar.”

Conclui-se assim esta importante declaração. É peculiar como nela encontramos paralelos com a situação das mulheres na atualidade, bem como ao longo da História das Mulheres. Também podem ser feitos paralelos claros entre este texto e outro já aqui analisado, o de Christine de Pizan.
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Utilizamos aqui a versão portuguesa publicada pela editora Ela por Ela
GOUGES, Olympe de; ROBINSON, Mary; STANTO, Elizabeth Cady ; et al. “Direitos da mulher e da Cidadã. Textos fundadores do feminismo moderno”. Lisboa: Ela por ela, 2002.

(*) Elen Biguelini é doutora em História (Universidade de Coimbra, 2017) e Mestre em Estudos Feministas (Universidade de Coimbra, 2012), tendo como foco a pesquisa na história das mulheres e da autoria feminina durante o século XIX. Ela escreve semanalmente aos domingos, no Site.

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