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O apito do trem – por Marta Tochetto

Inundou 'meu coração de cheiros, sons.. que fazem parte da minhas lembranças’

O apito do trem inundou meu coração trazendo lembranças da minha história e da Santa Maria que foi coração ferroviário do Rio Grande do Sul.

Há cerca de dois meses passei a fazer trilhas em meio a natureza com o grupo Andantes Santa Maria. É um grupo de pessoas que ao trilhar encontra afinidades e torna-se amigo. Os sábados de tarde ganharam sentido se revestindo de andanças, de contemplação e de agradecimento. Caminhando e trilhando para movimentar o corpo, às vezes, um tanto enferrujado pelo tempo e pela pouca atividade física.

Contemplação da natureza que é beleza e perfeição indescritíveis, esculpida e reproduzida pela inspiração e talento divinos. Beleza biodiversa que transborda, inunda e preenche os nossos pulmões, se distribuindo em uma corrente de vida a todos os cantos do nosso corpo. Os olhos registram grandiosidades, magnitudes e singelezas que, volta e meia, se transformam em lágrimas. Lágrimas de quase incredulidade ante tanta perfeição. Lágrimas de gratidão.

Gratidão por uma riqueza natural que nada cobra e tudo dá. Dádivas essenciais para a vida humana, generosamente configuradas na forma de água, do ar que respiramos, dos alimentos, de abrigo, de chuva, de sol e luz. Gratidão pela oportunidade de contemplação, de conexão, de sinergia. Sinergia, muitas vezes, interrompida e quebrada quando, em meio a tanto maravilhamento e bondade, restos de construção, mobiliário e pneus inservíveis, sacolas e embalagens plásticas, garrafas de vidro, papéis, papelões e caixas, televisores e computadores, surgem feito seres alienígenas, trazidos e descartados, sem medo de errar, pelo próprio homem que tanto depende dos bens naturais para a sua sobrevivência. Nítida atitude de desconexão e desinformação ou, simplesmente, de irresponsabilidade.

Ilude-se quem acha que um terreno baldio na zona rural é longe o suficiente para os impactos não atingi-lo. No planeta não existe fora. O planeta é um sistema vivo onde tudo e todos, indistintamente, estão conectados e interligados. Sendo um sistema vivo, o planeta responde a toda e qualquer ação a ele dirigida. A intensidade da resposta é proporcional à contundência da ação. A física explica com propriedade o fenômeno da interação de forças.

Em meio aos ipês floridos, ao perfume das madressilvas, ao cântico dos canários-da-terra, dos sabiás-laranjeira e dos bem-te-vis, às cores e à algazarra barulhenta das caturritas, aos matizes dos sanhaçus e dos pica-paus apita, antes de aparecer na curva, um imenso e desbotado trem com seus vagões serpenteando a longa estrada de trilhos. O apito longo e alto, cheio de nostalgia invade o fundo da minha alma, trazendo lembranças e saudade. Lembranças de uma infância na Santa Maria que foi coração ferroviário do Rio Grande do Sul. Entroncamento ferroviário por onde se interceptavam pessoas, mercadorias, sonhos e negócios.

O Bar Bonifácio na década de 60 se transformou em Mercearia Bonifácio, impulsionado pela proximidade da ferrovia com a Avenida Rio Branco. Meu pai viajava a Porto Alegre de trem para fazer compras – maçãs argentinas e até francesas, vinhos portugueses e espanhóis, não ficando de fora os da Serra Gaúcha, bacalhau legítimo norueguês, tâmaras, uvas passas, figos, damascos, tahine, sardinha em salmoura, halawi ou simplesmente raleu, azeitonas pretas em óleo de oliva e ervas, arenque defumado, queijos de todos os tipos e tamanhos, jamon e presunto parma, temperos dos mais diversos, além de conservas e muitos enlatados. Trazia também ovos, frutas e vegetais que não eram produzidos e encontrados na região.

A viagem demorava de dois a três dias. As mercadorias eram despachadas pelos importadores e distribuidores à Santa Maria pelo trem. Quando os produtos chegavam era aquele vai e vem da carroça fretada para levar tudo até o bar. Enquanto a carroça permanecia naquele leva e traz, eu e algum dos meus irmãos ficávamos na estação cuidando as mercadorias, até que meu pai voltasse para buscar o restante. As sucessivas idas e vindas só cessavam quando o transporte era completado. Lembro do amontado de caixas de todos os tamanhos, formatos e cores e, de outros tantos, que como meu pai, traziam roupas e outras utilidades para abastecer a cidade. 

O apito do trem inundou meu coração de cheiros, de sons, de imagens que hoje fazem parte da minha história, das minhas lembranças e, não menos, da história e das lembranças de Santa Maria. As lágrimas que dão forma as minhas distantes memórias, também são de tristeza pelo desmonte do transporte ferroviário no Brasil que oportunizou o crescimento de tantos negócios, como o do meu pai. Oportunizou passeios e reencontros àqueles que viagens de ônibus ou de avião não cabiam no orçamento. A grande capacidade de transportar pessoas e produtos proporcionava um deslocamento barato, amplo e diverso, independentemente do nível econômico. O transporte ferroviário, ainda hoje, é uma importante alternativa para desafogar o falido sistema rodoviário urbano, no entanto foi sucateado e sufocado pela falta de investimentos e de modernização.

O trem que cruzou minha trilha em Itaara parecia interminável. Passou deixando um rastro de poeira, de óleo e de nostalgia. Seguiu apitando pelas curvas do caminho rasgando matas e interceptando a natureza, levando consigo um pouco das minhas lembranças, da minha história e da história da Santa Maria das ferrovias, da qual apenas restam a vandalizada estação e o abandono de um espaço que guarda em sua memória, prosperidade, encontros e desencontros.

(*) Marta Tocchetto é Professora Titular aposentada do Departamento de Química da UFSM. É Doutora em Engenharia, na área de Ciência dos Materiais. Foi responsável pela implantação da Coleta Seletiva Solidária na UFSM e ganhadora do Prêmio Pioneiras da Ecologia 2017, concedido pela Assembleia Legislativa gaúcha. Marta Tocchetto, que também é palestrante em diversos eventos nacionais e internacionais, escreve neste espaço às terças-feiras.

Nota do Editor: a imagem (de reprodução) que ilustra este texto é do momento flagrado em video e publicado na rede social da articulista no final de semana – com a passagem do trem em Itaara.

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