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Farroupilhas de hoje – por Orlando Fonseca

Posse da gaúcha Rosa Weber presidente do STF. E a questão do Hino

Semana passada tomou posse como presidente do STF a gaúcha Rosa Weber. Momento histórico, tanto para ela, pois não é comum que as mulheres tenham ocupado aquele mais alto posto, quanto para nós, rio-grandenses, honrados com uma conterrânea sendo alçada àquela posição.

E, para marcar a efeméride, talvez por estarmos entrando na Semana Farroupilha, símbolo de uma luta desse povo para fazer parte da história republicana (ainda em pleno Brasil Imperial), a presidente citou um verso do Hino Rio-Grandense, que tem dado o que falar, aqui e alhures: “Mas não basta para ser livre ser forte, aguerrido e bravo. Povo que não tem virtude acaba por ser escravo”.

Evidentemente que há um contexto de comemorações do bicentenário da Independência do Brasil, no qual a sua citação ganhou a devida acomodação discursiva. Ela emendou em seguida: “E virtude, entenda-se, digo eu, como disposição firme e constante para a prática do bem”. O que, no entanto, não livrou Rosa Weber de críticas daqueles que veem neste verso um problema histórico.

Nesse sentido, tendo a concordar com os que fazem um parêntese para salientar o despropósito na afirmação do verso. Porque não podemos desconsiderar que houve escravidão de um povo em nosso país durante mais de três séculos, e que o Brasil foi um dos últimos a abolir a escravatura. Como afirmar, sem as implicações semânticas que esta chaga social ainda apresenta em nosso país, que é a “falta de virtude” a razão de um povo se tornar escravo?

Há quem defenda que, no momento histórico em que foi criado, este conceito nada teria a ver com o povo africano. Entretanto, como nos ensina o filósofo alemão, Walter Benjamim, a “verdade está no devir histórico”. Por isso aponto para o fato de que não estamos mais cantando esse hino no contexto em que ele foi criado. E se ele “queria dizer algo”, hoje produz afirmações que precisam ser, no mínimo, questionadas.

Sem entrar no mérito de uma visão eurocêntrica que ainda vigia ao tempo em que a letra do hino rio-grandense foi criada, quero considerar algo em torno do sentido que comporta, no contexto da escravidão moderna (para distingui-la daquela praticada na antiguidade). Porque, com o processo de colonização praticado pelos países europeus na África e na recém “descoberta” América, a partir do século XVI, só houve um povo feito escravo: os africanos.

Os indígenas, por sua natureza, não se adaptaram ao modelo escravagista de produção dos colonizadores. Aliás, em sua maioria, os povos originários da América foram dizimados – mas isso é outra história. Então, o que quero considerar é que há uma impropriedade no uso da palavra “virtude” (mesmo com as ressalvas feitas por Rosa Weber em seu discurso).

Não é por falta de virtude que um povo é feito escravo, mas, desde que há guerra por disputa de território entre os impérios, é por consequência da supremacia do poder bélico, da força militar, guerreira, armamentista que se sobrepõe a um exército menos equipado.

No caso da escravidão do povo africano, temos razões do capitalismo mercantilista, da necessidade de uma mão de obra abundante, sem maiores custos (que perduram nas relações de trabalho atuais). De modo que a letra deveria ser modificada, pois não revela verdade histórica, filosófica ou antropológica.

Há quem resista à mudança da letra do Hino, porque tende ao conservadorismo. Rosa Weber aponta: “sabemos que a evolução da humanidade se dá em devir permanente, em processo dialético, em atualização necessária” (não se referindo ao Hino, mas ao contexto do bicentenário).

Por isso, alerto eu, é bom atentar que esta letra já foi modificada mais de uma vez. Um símbolo que almeja a universalidade não pode comportar uma referência que particulariza um mérito, ou despreza uma parcela dos representados.

Isso sim é a virtude de um povo sábio: “realizar as mudanças que os tempos exigem, mantendo princípios, em conformidade com o lema liberdade, igualdade e humanidade, também inscrito na bandeira do Rio Grande do Sul”, salientadas pela nova presidente da Suprema Corte brasileira.

(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

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7 Comentários

  1. Uniformidades artificiais não são novidade. Antigamente no contexto da imigração italiana criaram os Circulos Italianos. Que agora viraram Circolos Venezianos, Trentinos, Friulanos, etc. Mudar o hino (que ficaria só com uma estrofe e muito refrão) só se for para recuperar o que foi perdido. Teria que ser passada legislação, o que é bastante dificil (não impossivel). A população teria que aderir a causa, algo que levaria um tempo. Obvio que a midia engajada militante começaria a bater no assunto. Não é necessario ser um genio para saber que o ‘simbolo’ não almeja a universalidade. Nunca almejou. Se identificava um povo em oposição a outro não poderia. Excluia até os gauchos que lutavam pelo Império (e POA hein?).

  2. O problema não está nem na virtude (no sentido de força moral, valour ou mérito). Os ‘africanos’ não são um ‘povo’. São um conjunto de povos. Daí a grande falácia. Alás, até hoje, vide Rwanda 1994. Alás, pais esta virando a ‘Cingapura da Africa’. Individuos foram escravizados e trazidos para o Brasil. Da Nigéria, Guiné, Cabo Verde, Senegal, Togo, Benin, Costa do Marfim, Serra-Leoa, Gana, Libéria e Mauritânia. De culturas e povos diferentes. Que não deixaram de existir na Africa. Alás, negar isto não sei se pode ser classificado como racismo.

  3. Walter Benjamin um neomarxista associado a Escola de Frankfurt suicidou-se por ser c@g@o. A afirmação ‘solta’ não sei de onde saiu, mas se lembro bem era contra o ‘progressismo’ (algo que, se não estou enganado, saiu do Hegel). Filosofos debatem, não ‘ensinam’ porque não são ‘profetas’.

  4. Eurocentrismo que a esquerda adora utilizar como ferramenta ainda hoje. Brasil não foi ‘um dos ultimos a abolir a escravatura’. China, por exemplo, só em 1909. Por ordem imperial. Alás, seculo XIV, Mansa Musa, rei do Mali, considerado por muitos a pessoa mais rica de todos os tempos. Fonte da riqueza? Ouro, marfim (elefantes óbvio), sal e escravos. Dizem que capturavam algo como 6 mil por ano. Quando o monarca fez a peregrinação a Meca levou 12 mil escravos. Cada um, dentre outras coisas, carregava 2 kk de ouro (animais de carga levavam ouro em pó, a peregrinação é historicamente relevante). Alás, trafico de escravos para o norte da Africa e para o Oriente Medio foi maior porque durou muito mais tempo. Para a esquerda todos os problemas do mundo se originam na Europa e tem algo a ver com ‘colonialismo’. Teses academicas, só isto.

  5. Costumo ignorar as ‘polemicas’ levantadas pela esquerda, 99,9% são perda de tempo. Vide Porongos, criou-se uma ‘narrativa’ em cima de uma possibilidade (em Deus confiamos, todos os outros tem que apresentar provas). Tudo ‘esquentado’ por teses academicas e bancas universitarias. Entra a ideologia e o metodo cientifico sai pela janela. Hino já foi ‘aleijado’ antigamente. ‘Entre nós reviva Atenas, para assombro dos tiranos, sejamos gregos na glória e na virtude romanos’. E o mesmo hino e os romanos não eram tão virtuosos assim. Alás, tanto gregos quanto romanos tinham escravos. Alás, Dublin já foi um grande centro de exportação de escravos na idade media. Alás, movimento anti-escravagista no Reino Unido começou com evangelicos britanicos e quakers. O que diz o(a) marxista professor(a) de historia? Interesses economicos devido a Revolução Industrial. Nem o declinio economico do ciclo do açucar no Caribe não entra na conta.

  6. Honrados com uma conterranea? Diria que tanto faz. Diria que a grande maioria está defecando e andando para ‘honrarias’ abstratas e ‘conquistas pessoais’ de ocupantes de altos gabinetes. Alás, nem é uma ‘conquista’, seria presidente de qualquer maneira por decurso de prazo a menos que tivesse que se aposentar compulsoriamente por conta da idade, algo que quase aconteceu. Tempo passa e ela vai sair também. Alás, é só sair na rua e perguntar quais foram os ultimos 5 presidentes do STF. Duvido que muitos saibam de cabeça.

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