O garoto do trompete – por Bianca Zasso
Um grande filme, o documentário sobre o imortal Ennio Morricone
É comum ouvirmos relatos de artistas sobre conflitos em família causados por suas escolhas profissionais. Atores cujos pais sonhavam que se formasse em medicina ou músicos que concluíram uma faculdade de Direito apenas para despistar as mães de suas verdadeiras ambições.
O documentário Ennio, O Maestro, que chega aos cinemas das principais cidades brasileiras hoje, tem início com seu personagem central, o compositor italiano Ennio Morricone, contando uma experiência completamente oposta. Seu pai insistiu que ele aprendesse trompete porque seria esse o modo como ele iria sustentar sua família. O garoto Ennio não era muito feliz com a proposta, mas aceitou. E o resultado é possível de ser conferido nas mais de duas horas de filme com um prazer único.
Dirigido pelo consagrado cineasta Giuseppe Tornatore, parceiro de Morricone em obras sublimes como Cinema Paradiso, Ennio, O Maestro, encantou o público ao ser exibido na última edição do festival 8 ½ Festa do Cinema Italiano. Não é para menos. Os cinéfilos conhecem Morricone ao primeiro acorde e até quem possui idas esporádicas ao cinema já ouviu falar do senhor italiano que teve mais de 500 trilhas para filmes e séries no currículo.
Mas o filme de Tornatore faz mais que revisar a obra do compositor. É uma verdadeira aula do processo criativo singular que guiou toda a carreira de Morricone, antes mesmo dele virar um dos preferidos de cineastas como Sergio Leone e Quentin Tarantino.
Há um equilíbrio raro entre vida pessoal e artística na obra. Sem se apegar aos dramas do jovem estudante de conservatório ou mesmo ao arranjador contratado da gravadora RCA, Tornatore nos apresenta um homem que encontrou na música seu caminho e fez de sua criação uma obsessão saudável.
Compositores de diferentes épocas e estilos são unânimes em afirmar que Morricone compunha com facilidade, anotava trechos como quem rascunha um poema num guardanapo de papel e sempre achava que podia ter feito melhor.
Suas crises por ter sido reconhecido como um compositor de música para filmes, algo considerado menor para a sua geração, logo vai se mostrando um acaso do destino que mudou sua vida. Nas crises, Morricone crescia. Sentia-se pequeno e criava obras cada vez mais grandiosas.
Vê-lo cantarolando arranjos criados em viagens de avião ou na sala de casa, é emocionante até para quem não tem na sua biografia alguma trilha sonora preferida do italiano. Há uma paixão nos olhos emoldurados por óculos de grossas armações que pouco se vê por aí. Capaz de tirar música de uma lata rolando pela rua,
Morricone nunca abandonou a música concreta, mesmo que seus professores fossem pesados críticos desta escolha. Eis mais um dilema: fazer a música que se acredita, mas também desejar ser acolhido por seus mestres.
As falas do maestro e também dos entrevistados ganham ritmo na montagem do filme, algo que só alguém da sensibilidade de Tornatore conseguiria atingir. Desde os primeiros planos, somos tomados pela força de Morricone, mesmo quando as imagens nos mostram um menino magricela tentando entender e fazer soar bem o seu trompete. A descrição de como a música surgia dentro dele ao ver uma cena é arrepiante e ensina muito sobre a linguagem cinematográfica e o que faz com que sejamos tocados ao assistirmos a um filme.
Os depoimentos de nomes como Bernardo Bertolucci, Marco Bellocchio, Dario Argento, Wong Kar Wai (um dos produtores e distribuidor do filme), Bruce Springsteen, Joan Baez, Lina Wertmüller, John Williams e Hans Zimmer só reforçam a genialidade do compositor nascido em Roma. A calma de sua fala parece uma resposta de onde estava sua potência: na sua música.
Esta que vos escreve tem um apreço gigantesco pelas criações de Morricone, especialmente suas composições para filmes giallo e spaghetti western. Sua música é parte importante da experiência cinematográfica, mas também funciona fora da sala de exibição. Perceber que o maestro sempre ficava receoso com suas criações, chega a ser engraçado.
Canções reaproveitadas, músicas que foram pensadas para um filme e acabaram entrando em outro. A vida é fluida e Morricone é uma prova disso. Sua música é “parte da família”. Para os amantes do cinema, ele é como um tio distante e talentoso, que dá cor aos nossos dias e até as nossas dores.
Falecido em 2020, Ennio Morricone é imortal. Não apenas por conta do filme de Tornatore, mas porque sempre haverá alguém no mundo descobrindo suas músicas e sendo transformado de alguma forma por elas.
Em certo momento do longa, um compositor afirma que suas composições nos fazem crer na existência de Deus. A colunista não poderia encerrar este texto de outra forma. Ennio, O Maestro é uma oração para ser rezada no último volume.
Ennio, O Maestro (Ennio)
Ano: 2021
Direção: Giuseppe Tornatore
Em cartaz nos cinemas. Em Porto Alegre, no Espaço de Cinema Bourbon Country.
(*) Bianca Zasso, nascida em 1987, em Santa Maria, é jornalista e especialista em cinema pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Cinéfila desde a infância, começou a atuar na pesquisa em 2009. Habitualmente, seus textos podem ser encontrados aqui às quintas-feiras.
Observação do Editor: as imagens que ilustram este texto são de Divulgação.
Que lindo artigo, Bianca. Um texto de quem realmente sabe sobre cinema, sua fruição e sua linguagem. Obrigado pela sinceridade em cada palavra.
Orquestras nos paises nordicos fazem apresentações só com as trilhas dos westerns (há videos no youtube como diz o outro). Um punhado de dolares. O bom, o mau e o feio. Era uma vez no oeste. Atrai publico. Cria o habito. Dá uns trocos.