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Mansfield Park e Cinderela – por Elen Biguelini

Jane Austen e a desconstrução dos contos de fada. E bem além disso...

Em Mansfield Park, Jane Austen constrói um mundo que muito se relaciona ao Conto da Cinderela. Mas como tudo em Austen, nada é como se espera e todo o conto-de-fada é desconstruído. Príncipes e heróis se perdem e, mais uma vez, Jane Austen leva seus leitores a questionarem as primeiras impressões.

Adams, Buchanam e Gesch, em The Bedside, Bathtub & Armchair Companion to Jane Austen fazem uma menção a frequente relação entre os livros de Austen com os Contos-de-Fada: “Mrs Norris é a madrasta má para a Bela Adormecida Fanny, Lady Susan a Rainha Má para sua filha Branca de Neve, e Cinderelas aos montes’ (Tradução livre. Adams, et al. 2008, 113). Fanny Price é Bela adormecida, escondida em um quarto frio de Mansfield Park, enquanto a personagem título do texto menos conhecido da autora trata a filha com desprezo.

A figura de Cinderela é a que mais pode ser observada. Norma Rowen a vê, principalmente, em três obras de Austen, são estas: Orgulho e Preconceito(1812), Mansfield Park (1814) e Persuasão (1816) (Rowen, 1995, 29-36).

Para a autora, as relações entre os livros de Jane Austen e o conto de fadas não são sempre tão óbvias. No caso de Orgulho e Preconceito, ambas Elizabeth e Jane Bennet fazem o papel de Cinderela e a história de Jane lembra mais a da Gata Borralheira do que a da heroína. No entanto, ambas (mulheres pobres) conseguem o coração de um homem rico.

Já em Persuasão, para Rowen uma reescrita mais madura de Cinderela, Anne Elliot é uma perfeita gata borralheira, que se sente como intrusa em sua própria família (Rowen, 1995, 34).

Paralelos e diferenças entre Mansfield Park e Cinderela.

Price, de Mansfield Park (Austen, 1814) não faz parte da família Bertram, que lhe acolheu, assim como Cinderela não faz parte do núcleo familiar entre sua madrasta e suas irmãs. A obra de Jane Austen é carregada de paralelos que podem ser feitos com o conto de fadas. No entanto, assim como em toda a obra de Austen, nem sempre o que pode ser observado à primeira vista é real.

Mansfield Park é a história de Fanny Price. Como sua mãe e seu pai são pobres e tem muitos filhos, seu tio Bertram a recebe em Mansfield Park. A família Bertram é da aristocracia inglesa e, embora o livro mostre o início de uma decadência desta mesma classe, os membros da família nunca deixam com que Fanny esqueça que não faz parte daquele grupo. Assim como Cinderela, Fanny passa a exercer funções de criada da casa, sendo renegada a um posto inferior ao de seus primos.

Quando os irmãos Henry e Mary Crawford chegam a vizinhança de Mansfield toda a história modifica. Edmund se apaixona por Mary e Henry Crawford, seduz ambas as primas de Fanny, mas se apaixona por ela. No entanto, quando Fanny não aceita casar com Crawford, ele tem um caso com uma das irmãs Bertram, casada, causando escândalo para a família. Ao perceber a reação de Mary Crawford, Edmund desiste da moça e ele, eventualmente, percebe que Fanny seria a sua companheira ideal.

Enquanto inicialmente a história realmente parece um paralelo direto com o conto da Cinderela, através de uma análise mais cuidadosa, percebe-se que não, pois Fanny não muda de status ao casar com Edmund, o Príncipe Encantado em Mansfield Park não seria Edmund, e sim Henry Crawford, pois somente ele poderia retirar a jovem da família que a renegava e introduzi-la ao mundo da aristocracia inglesa.

Fanny, no entanto, não é uma mera Gata Borralheira, já que ela, dentro do livro, tem o poder da ação e da crítica. As meio-irmãs de Cinderela são vistas como excessivamente preocupadas com a beleza e com a necessidade de encontrar um marido (assim como são as primas de Fanny), no entanto, Cinderela não parece ter o poder de compreensão que Fanny tem, nem daqueles que estão a sua volta – sua família – nem da sociedade em que está inscrita. A personagem de Cinderela é marcada pela submissão.

Fanny é, ainda criança, levada de seus pais e irmãos para a família de uma madrasta má (Mrs. Norris), na qual é ignorada e tratada quase que como uma empregada. O quarto em que dorme é o quarto da antiga preceptora dos filhos da família Bertram e não tem fogo no inverno. Este seria o equivalente ao dormir na cozinha, perto das cinzas que dão o nome a Cinderela. Mas ao contrário da personagem do conto, Fanny não tem cinzas, sua relação com o trabalho não é através da sujeira, mas sim da localidade de seu quarto e da forma como é tratada por sua tia e por todos de sua família.

Norma Rowen vê, no entanto, as cinzas de Cinderela como um símbolo de sua imperfeição, inadequação a sua posição (Rowen, 1995, 30). Como já foi dito, Cinderela não se encaixa a sua posição, e as cinzas são símbolo disso. Neste sentido, Fanny tem, sim, cinzas, pois está em uma posição inferior à do resto da família Bertram, o que é frequentemente lembrado pela narração.

Isto é feito principalmente pela tia (Mrs. Norris), que é a madrasta má por excelência. Embora Fanny more com a família Bertram, sua tia Norris frequentemente está presente nos acontecimentos e parece ser a mais preocupada em colocar uma distância entre Fanny e seus primos e primas. Ao contrário dos outros personagens, não há dualidade quanto a sua relação com Cinderela. Já as irmãs Bertram, Maria e Julia, são aquelas que farão de tudo para tirar a felicidade de Fanny, ainda que não de forma consciente. Mimadas e preocupadas em excesso com a sociedade e com suas imagens.

Edmund Bertram, o herói da história, é o verdadeiro Príncipe/Herói. É ele que tira Fanny da posição inferior em que se encontra aos olhos da primas e da tia Norris, ao transformá-la oficialmente em uma Bertram. No entanto, Austen brinca com sua imagem de cavalheiro. Ele ama a outra, ele vê a “princesa”/Fanny como irmã. Além disso, ao invés de representar algo que ela pode alcançar, ele é a mesmice. Com Edmund Fanny não sai do núcleo de Mansfield. É claro que para Austen é o não sair de Mansfield que é importante, pois ainda que a mansão não aparente ser o lar de Fanny, o é, e é a paixão e o casamento com Edmund que permitem que o lar esteja completo. Rowen, no entanto, interpreta o final da obra como a continuação das mesmice (Rowen, 1995, 33).

Ao mesmo tempo, a figura de príncipe colocada por Edmund contrasta com a de Henry Crawford. Edmund é o conforto, Henry a novidade. Com Crawford ela conseguiria alcançar algo diferente, sair do mundo de “Cinderela/cinzas/empregada” na qual se encontra em Mansfield e ser inserida na aristocracia, tornar-se uma princesa.

Crawford é tanto herói como vilão. Ele é o novo. Ele pode tirá-la da mesmisse, apresentar a ela um outro mundo. Nesse ponto ele é o príncipe encantado. Mas sua beleza, sua consciência desta beleza, e sua falta de moral (para padrões austenianos) fazem dele vilão, não herói.

Norma Rowen, no entanto, não vê na falta de moral da personagem um impedimento. Para a autora, Henry tem o papel mais principesco da obra e ela questiona-se se Fanny realmente conseguiu seu Príncipe (Rowen, 1995, 33). Mas a autora esquece, que mesmo que a própria narradora defenda Henry Crawford e afirme que o fim poderia ser outro, em uma obra austeniana o herói superior moralmente sempre irá ser o verdadeiro herói. E Crawford apenas aparenta ser um herói.

Relacionado a Henry Crawford, a figura de sua irmã também é dúbia e parece exercer mais de um papel. Mary Crawford seduz a todos com sua beleza e suas atitudes, mas na verdade não deseja o bem de qualquer um se não o dela própria. É por ela que se apaixona o herói, mas não pode ser vista como a vilã, pois o mesmo sentimento que puxa Edmund para si, também atrai Fanny. E é sua forma de agir que permite que Fanny e Edmund se unam. É também ela que dá a Fanny conhecimento, a ajuda na preparação para o Baile – ao lhe dar um colar para que esta possa usar o pingente que havia ganhado do irmão. Neste momento, Miss Crawford parece se relacionar com a fada madrinha. 

Mas seria ela uma “fada madrinha”? Mary Crawford, embora aparente bondade, assim como seu irmão, é na verdade apenas um exemplo de charme em excesso que, para Denis Donoghue é um dos dois defeitos que fogem da verdade em Jane Austen. (Donoghue, 1968, 41). Assim como Henry Crawford, então, Miss Crawford é uma figura dúbia, não poderia ser a verdadeira fada madrinha, salvadora de Fanny.

Mas poderia esta figura ser encontrada no tio da personagem?

Ele lhe dá um lar, lhe dá espaço. Embora tenha passado a maior parte do tempo longe, quando volta vê o valor de Fanny, o que é ignorado por muitos membros de sua família. É claro que o valor de Fanny aqui é muito mais relacionado ao fato de ela ter se tornado uma moça, passível ao casamento e com valores morais que são perceptivelmente superiores aos de suas primas, além de uma educação formal que embora superficialmente pareça ser inferior, também é mais elevada que de ambas as primas. Ainda assim, ele lhe dá valor e até mesmo lhe dedica um baile.

A família de Fanny, que continua a residir em Portsmouth enquanto ela mora em Mansfield, também parece ter seus paralelos com o conto. Sua mãe, seu pai e seus irmãos representam aquilo que ela perdeu, assim como o pai de Cinderela. No entanto, ao invés de apenas uma madrasta e duas meio-irmãs, Fanny também tem um casal de tios e 2 primos. Sua família não se resume ao desprezo. Ela é sim, ignorada, mas tem seu papel dentro da família, e o papel de Crawford não é apenas demonstrar a ela que ela pode ser “Princesa” em outro “Palácio”, mas também demonstrar aqueles que moram em Mansfield que ela é necessária na mansão.

Mas a família não só representa aquilo que ela perdeu, mas é também aquilo que ela não mais é. Ela não pertence mais aquele grupo familiar, seu lar tornou-se Mansfield. É neste ponto que a família se desconecta da figura de Pai de Cinderela. Ela já não mais precisa dos familiares e da casa de Portsmouth, ela já é um sujeito por si só, mais relacionado a Mansfield Park do que  Portsmouth.

Todos os frequentes paralelos entre Cinderela e Mansfield Park são assim construídos, reconstruídos e desconstruídos na obra de Jane Austen. Henry Crawford seria o príncipe encantado, mas não engloba nenhuma das características que um herói austeniano deveria ter. E é a capacidade de Fanny perceber isto que a transforma em uma heroína austeniana, que aprende com seus erros e com uma elevada consciência moral.

Fontes:

Austen, Jane (1992). Mansfield Park. London. Wordsworth Editions. [1814]

Perrautl, Charles (1998). Cinderela. Maria Teresa dos Santos Silva (trad.). Porto. Ambar.

Bibliografia:

Adams, Carol et al. (2008). The Bedside, Bathub and Armchair Companion to Jane Austen. New York: Continuum International Publishing Group.

Dahl, Roald (1982). Histórias em verso para meninos perversos. Luísa Ducia Soares (trad.). Lisboa. Teorema. 

Donoghue, Denis (1968). A view of Mansfield. In Southam. B.C. (editor). Critical essays on Jane Austen. London : Routledge & K. Paul. 39-59.

Donoghue, Emma (1997) Kissing the Witch. London. Penguin Books.

Miles, Robert (2003). Jane Austen. Devon. Northcote House Publishers.

Queiroz, Renato da Silva (1991). O herói-trapaceiro. Reflexões sobre a figura do ‘trickster’. In. Tempo Social. Rev. Sociol. São Paulo. USP. 3 (1-2). P 93-107.

Rowen, Norma (1995). Reinscribling Cinderela: Jane Austen and the Fairy Tale. In Sanders, Joe, ed. Functions of the Fanatastic. Westport, CT. Gerrenwood. 25-36.

Todd, Janet (2006). The Cambridge Introduction to Jane Austen. Cambridge. Cambridge University Press.

Walser, Robert (1985). Gata borralheira, branca de Neve, a bela Adormecida. Célia Henriques (trad.). Lisboa. Edições Culturais do Subterrâneo. [1978].

(*) Elen Biguelini é doutora em História (Universidade de Coimbra, 2017) e Mestre em Estudos Feministas (Universidade de Coimbra, 2012), tendo como foco a pesquisa na história das mulheres e da autoria feminina durante o século XIX. Ela escreve semanalmente aos domingos, no Site.

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Um Comentário

  1. Meninas continuam consumindo contos de fadas. Jane Austen é nichada, pouca gente le. Até porque é uma chatice. É este tipo de ‘ciencia’ que torna os ‘investimentos’ em pesquisa no Brasil altamente discutiveis. O que não se escreveu sobre Machado de Assis ainda? Quantas teses sobre Machado de Assis ainda irão escrever? E sobre Jane Austen?

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