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Um homem para três – por Bianca Zasso

O primeiro longa do diretor Eduardo Morotó: “A Morte Habita à Noite”

O escritor Charles Bukowski é um símbolo. Quando se quer falar de criadores que levaram o álcool para conviver ao lado da máquina de escrever e tornar as loucuras da vida a motivação para criar linhas loucas que virariam livros inesquecíveis. Foi inspirado no Alemão que imortalizou o submundo americano que o diretor Eduardo Morotó, conhecido pelo ótimo curta-metragem Mar Exílio, criou seu primeiro longa, A Morte Habita à Noite, que chega aos cinemas nesta quinta.

O longa acompanha a trajetória de Raul, desempregado e que perambula pelo Mercado São José, no Recife, durante o dia e volta para os braços de sua namorada Lígia (Mariana Nunes) à noite. O casal mora em um apartamento precário e já na primeira cena a pobreza dos cenários é atravessada pela protagonista-fantasma do filme: a morte. Um homem se atira do prédio e Raul e Lígia veem seu corpo passar pela janela. É o começo do velório de Raul, que apesar de falar, beber e escrever, está tão morto quanto o vizinho que arrebentou a cabeça no chão.

A Morte Habita à Noite louva a decadência em sua forma e conteúdo. A direção de arte é precisa ao construir os ambientes que Raul irá habitar. Não são muitos, mas os elementos se repetem. A poltrona rasgada, as panelas amassadas, o banheiro com espaço mínimo entre a privada e o chuveiro. Um lar bukowskiano na sua essência. Sempre cambaleante, Raul circula por essas paredes descascadas embriagado de algo mais que a cachaça que traz no bolso. O seu mundo não permite equilíbrio. Quando sua relação com Lígia chega ao fim, seu sofrimento não é um clichê, mas o início de uma procura. Quando encontra a jovem Cássia, interpretada pela talentosa Endi Vasconcelos, tenta manter a distância, mas a salva mais de uma vez do fim. A morte continua rondando Raul, por mais que não o ataque diretamente.

A atuação de Roney Villela como protagonista mereceu todos os prêmios que conquistou em festivais pelos quais o filme passou. Preciso, nada caricato, ele consegue executar com naturalidade até o mais literário dos diálogos. Aliás, é nessas falas que a alma de escritor de Raul se revela. Ele quase não aparece escrevendo durante o filme, mas repete mais de uma vez que é um escritor. Teria morrido a arte dentro dele e por isso ela pouco aparece no recorte de sua vida que nos é apresentado? No terceiro ato de A Morte Habita à Noite, uma nova mulher surge. Se a morte espreitava por meio de Lígia e Cássia, com Inês (vivida por Rita Carelli) ela chega com os dois pés na porta.

Eduardo Morotó dirige seus atores com cuidado e percebe-se que há uma preocupação em tornar verossímil aqueles personagens. No entanto, há momentos que beiram o teatral, como o encontro de Lígia com suas colegas de trabalho, onde o riso solto parece feito para o palco e não para a tela. Cássia é, sem dúvida, o ponto mais cinematográfico do filme. Seus gestos grandiosos expõe a força de sua juventude em um minuto para na sequência seguinte tornar-se recolhida, frágil. A questão central é que A Morte Habita à Noite traz um Recife com ares decadentes, mas que parecem mais uma necessidade de filmar alguns locais do que propriamente criar uma atmosfera. Os tons da fotografia se repetem a ponto do espectador mais distraído se confundir com as casas que Raul vai habitando ao longo da história.

Longe de ser um filme fraco, essa primeira incursão em longa-metragem de Morotó merece atenção, mas tomando os devidos cuidados. Seus atores são carismáticos e é quase impossível não se encantar com os olhares e os arroubos de cada um deles. Apaixonados, pode ser que não percebamos o vazio do escritor que raspa as escamas do peixe para poder pagar o aluguel e o cigarro. Mesmo que mulheres surjam em seu caminho, elas acabam virando imagens num papel, cartazes de propaganda. Não parecem calar fundo na alma de um homem que se diz um contador de histórias. Bukowski bebeu, amou e escreveu em doses semelhantes e isso fica claro nos seus poemas e romances. Raul, mesmo inebriado pelas ruas e criaturas do Recife, parece ter pouca inspiração e uma paixão fugaz demais para quem se diz um homem intenso. As mulheres que cruzam sua estrada são bem mais interessantes e vivas, apesar dos pesares. Se Godard criou uma mulher para dois, Morotó colocou um homem morto para três moças que vivem com mais força as dores e os sonhos da realidade.

A Morte Habita à Noite

Ano: 2022

Direção: Eduardo Morotó

Em cartaz no Cine Bancários de Porto Alegre (R. Gen. Câmara, 424)

(*) Bianca Zasso é jornalista e crítica de cinema. Mestra em Ensino de Humanidades e Linguagens e Especialista em Cinema pela Universidade Franciscana (UFN). Editora e sócia do projeto Formiga Elétrica. Afiliada da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abracccine), da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (Accirs) e integrante do Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Habitualmente, seus textos podem ser encontrados aqui às quintas-feiras.

Observação do Editor: as imagens que ilustram este texto são de Divulgação.

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