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Poupem as crianças e os jovens da deseducação ambiental dos adultos – por Marta Tocchetto

Quem tem que aprender a não jogar lixo no rio são todos os adultos inescrupulosos e deseducados.

Está prevista para esta terça-feira, 14 de fevereiro, a retirada do “mar de resíduos” que apareceu no Gravataí. O aparecimento para uns pareceu mágica surreal. Para outros, atitude corriqueira até então submersa nas águas do rio. O fato é mais comum do que muitos imaginam. A quantidade mostrada equivale a um campo de futebol. Me atrevo a dizer que o volume é bem maior. São vários campos de futebol. Apareceu apenas a ponta do lixoberg (iceberg de lixo), a parte superficial que a seca descortinou. E o que ainda não apareceu? E o que nem vai aparecer? Muitos resíduos tiveram e terão seus constituintes tóxicos solubilizados, como pilhas, lâmpadas fluorescentes, medicamentos, peças metálicas, equipamentos eletroeletrônicos, produtos de higiene e limpeza… a lista e os impactos são enormes e, além de tudo, muitos permanecerão reagindo, infinitamente, invisíveis a olho nu. O cumprimento da logística reversa e a implantação dos planos de gerenciamento previstos pela Política Nacional de Resíduos Sólidos precisam, urgentemente, serem exigidos e fiscalizados. Investimentos em saneamento são essenciais para evitar que se atue sempre nas consequências, em vez de nas causas.

Tratar rios e mares como latas de lixo não é de hoje. Esgotos e despejos clandestinos são lançados nos corpos hídricos contando com a diluição que nem sempre acontece. Estão aí as praias de Santa Catarina que não me deixam mentir. Sofás, pneus, material de construção, televisores, fogão, embalagens, animais mortos, restos de comida … a variedade é inimaginável. Na maior cara de dura, camionetes, caminhões e carros particulares estacionam às margens – vale também para terrenos baldios e matas – desovando tudo e mais um pouco. Dão às costas e vão embora como se aquele espaço, só porque não é a sala da sua casa, não lhe pertence.

A prática de esconder embaixo do tapete é comum. Lembram do porta-aviões São Paulo que no início do mês de fevereiro foi afundado pela Marinha Brasileira, apesar de todos os alertas do IBAMA? Nos porões, diversos produtos perigosos incluindo dez toneladas de amianto, substância comprovadamente cancerígena, foram submersos e permanecerão no mar reagindo e envenenando as águas, seres de todas as espécies, inclusive a atmosfera. Vale lembrar que na natureza tudo, tudo mesmo, está conectado. Mais dia menos dia, a conta chega e remediar é sempre mais caro do que prevenir. Parece que essas máximas tão simples e populares são deixadas de lado quando o interesse particular sobrepõe o coletivo.

A justificativa para o aparecimento do resíduo no Gravataí foi atribuída à ocupação de áreas irregulares. A população que vive nestes locais não sabe descartar corretamente e também não dispõe de locais adequados para tal, dizem. Será mesmo? Colocar nos ombros dos mais pobres, a deseducação da população em geral e a inoperância do poder público em estabelecer um sistema de gestão de resíduos, é fácil e simplista. Recair a responsabilidade à população inviabilizada que sofre com a ausência de políticas públicas que reduzam as desigualdades sociais, ambientais e econômicas é negligenciar o direito de todos às condições dignas de vida, como se os mais pobres fossem cidadãos de segunda classe. Enquanto o lixo estava coberto pela lâmina de água de um rio agonizante, quase morto, o problema não existia para as cidades de Cachoeirinha, Alvorada, Gravataí e Porto Alegre. Visível, passou a incomodar, pois afeta a economia. Mais uma vez, a tal da sustentabilidade que os prefeitos e as autoridades gostam tanto de mencionar e evocar, não passa de falácia. O interesse, vira e mexe, e recai, exclusivamente, no lucro.

O enfrentamento do problema, na visão dos mesmos prefeitos, é a educação ambiental. Concordo! Segundo eles, para tanto é preciso reforçar a educação nas escolas e ensinar as crianças. Prefeitos, por favor! Poupem as crianças e os jovens da deseducação dos adultos. Poupem os professores que se desdobram para desenvolver projetos de educação ambiental compatibilizando a elevada carga horária em sala de aula e o crescente número de alunos. Os dirigentes parecem (ou fazem de conta) desconhecer que o desenvolvimento de projetos e atividades extraclasse valem, muitas vezes, mais do que muitas horas em frente a um quadro cheio de conteúdo. Educação é se conectar com o mundo ao redor.

Quem tem que aprender a não jogar lixo no rio não são apenas as crianças e os jovens, tampouco somente os mais pobres. Quem tem que aprender a não jogar lixo no rio são todos os adultos inescrupulosos e deseducados. Enquanto não houver um processo contínuo e transversal (o que atravessa todas as áreas) que envolva toda a sociedade, por exemplo, meios de comunicação, estabelecimentos comerciais e empresariais, clubes e entidades de serviço, de classe e esportivos, órgãos públicos e privados, ou seja, todo e qualquer setor que realiza algum tipo de atividade, a responsabilidade e a culpa vai continuar recaindo sobre as escolas, as universidades e outros estabelecimentos, como se educação fosse de exclusiva responsabilidade e estivesse relacionada apenas, com ensino e com sala de aula.

Educação é transformação. Educação não é exclusividade das escolas e dos professores. Educação é responsabilidade de toda a sociedade. Educação é um processo contínuo, o qual se aprimora a vida toda. Está passando da hora, a proposição e o desenvolvimento de um amplo programa de alfabetização e educação ambientais para adultos, pois são eles que com os maus exemplos, deseducam as crianças e os jovens que aprenderam e aprendem nas escolas a valorizar a natureza e a vida que não subsiste sem saúde ambiental.

(*)Marta Tocchetto é Professora Titular aposentada do Departamento de Química da UFSM. É Doutora em Engenharia, na área de Ciência dos Materiais. Foi responsável pela implantação da Coleta Seletiva Solidária na UFSM e ganhadora do Prêmio Pioneiras da Ecologia 2017, concedido pela Assembleia Legislativa gaúcha. Marta Tocchetto, que também é palestrante em diversos eventos nacionais e internacionais, escreve neste espaço às terças-feiras.

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5 Comentários

  1. Como resolve? Não tenho a minima ideia. Começaria vendo como resolveram o problema em outros lugares. Ajustar a legislação, se necessario, e fazer cumprir. Se os londrinos conseguiram dar uma guaribada no Tamisa é possivel. Mas só escrever textos não basta, tem que colocar a mão na massa.

  2. Soluções de sempre. Educação e ‘campanhas educativas’ (que só servem para colocar dinheiro no bolso dos publicitarios e dos donos de meios de comunicação). Muito do lixo foi jogado em lugar inadequado por gente que já passou pelos bancos escolares ou os abandonou. Obvio. Alas, uma proeza, não citar as sangas poluidas da cidade e o lixo que jogam no Cadena. Alas, outro problema, nunca vi uma sanga correndo em cima de uma coxinha. Dai que sempre que alguém reclama dos buracos nas ruas da cidade algum imbecil para passar pano larga um ‘a cidade foi contruida num local com muitos cursos d’agua’. Nada a ver, palavras chave são ‘impermeabilização do solo’ e ‘drenagem mal feita’. E Corsan, obvio.

  3. São Paulo foi afundado a 5 Km de profundidade. Amianto é cancerigengo para mamiferos. Alternativa era vender e, vamos combinar, sem qualquer garantia de que o amianto iria parar em um lugar adequado. Esperar soluções perfeitas é tipica de quem faz nada. Alas, uma das causas da derrocada do Imperio Romano foi utilizar encanamentos feitos de chumbo. Alas, grande probabilidade (matematica) de que todos os navios afundados na Segunda Guerra terem amianto.

  4. Roma antiga. Rio Tibre tinha aguas poluidas (vide Cloaca Maxima). Construiram aquedutos para trazer agua pura de longe. Nada novo debaixo do sol New York City tem um esquema parecido.

  5. Logistica reversa acho que só funciona em lojas de pneus e oficinas autorizadas. E parte dos eletronicos. Mostram o que foi trocado, perguntam se a pessoa quer levar ou não. Na informalidade nada acontece. No resto falta a ‘conveniencia’. Na aldeia então, nem se fala. A regra de transito aqui é ‘se ligar o pisca alerta pode parar o carro onde quiser porque é bem rapidinho’. Sair de casa para devolver pilhas sem carga ou remedios vencidos é coisa da Globo, mais facil jogar no container.

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