Artigos

Vinho e vinagre – por Orlando Fonseca

“Indústria vai ter de fazer melhor e com mais respeito ao trabalho humano”

Quem tem o hábito de assistir a documentários em série na TV, deve ter, em algum momento, sentido orgulho ao ver matérias sobre as vinícolas gaúchas. Além de ver a beleza da Serra Gaúcha, tomar conhecimento da evolução da indústria, o empenho de famílias na produção que remonta ao início do século passado.

No entanto, notícias sobre utilização de trabalhadores em condições análogas à escravidão devem ter posto água no vinho dos aficionados do produto. Ao mesmo tempo em que se pode saudar o crescimento de uma produção identificada com nosso chão (especialistas chamariam de “terroir”), precisamos falar sobre um tema que ganha conotações diversas pelo mundo.

Os produtores e empresários brasileiros precisam se dar conta de que a escravidão foi banida no país, há 135 anos. Na produção vinícola da Serra Gaúcha, há novos significados com as descobertas do MPT. Espumante Brut quer dizer outra coisa, e ainda, se no vinho tinto aparecerem notas de spray de pimenta, é porque o trabalho análogo à escravidão deixou suas marcas na safra 2023.

Não existe milagre no setor. Aquele que era capaz de transformar água em vinho passou pela Terra há mais de dois mil anos. Tivemos, recentemente, um falso messias que espalhou um discurso de ódio, fazendo um estrago no setor agrícola no país (vide resultado eleitoral em Bento Gonçalves).

Não à toa, muitos dos que bradaram o seu nome, e fizeram imprecações contra o seu adversário estão agora, no Rio Grande do Sul, clamando por uma política que dê sustentabilidade à produção, em face de sucessivas intempéries, neste nosso clima alterado. Não é mais com uso abusivo de agrotóxicos, com a devastação de florestas ou degradação do ambiente natural que o Brasil vai se posicionar entre os maiores produtores de commodities no mundo.

E o que precisa mudar é a mentalidade. Sim, falta investimento para a mecanização, a atualização de manejos menos agressivos à natureza e securitização da produção, porém, o produto mais urgente é o de uma compreensão dos novos tempos.

As vinícolas se defendem, dizendo que a culpada pelos maus tratos aos contratados é uma empresa terceirizada. Eis mais um dos problemas que a relação entre capital e trabalho trouxe para a cena social e política, ao menos, em nosso país. Assim como se altera a relação do contratado com o produto final – seja ele qual for -, também se altera a relação do proprietário com os seus “colaboradores” (eufemismo para esconder uma série de mal-entendidos).

Quem colabora, no caso, com a produção de riqueza, deveria ter, pra começo de conversa, uma participação nesta. Mas isso é outra história. Ora, a própria legislação estabelece que há uma responsabilidade solidária entre contratantes e contratados de empresa terceirizada. Então não é possível levantar a desculpa de desconhecimento da situação.

Eram 200 safristas, envolvendo três grandes produtoras, e o mínimo que espera quem aprecia ou se orgulha do produto é que os proprietários saibam quem está atuando para levar adiante o seu negócio. E, no ponto mais alto dessa relação, que não desconheça condições semelhantes à escravidão para chegar a um bom tinto ou a um espumante de qualidade.   

Que esteja ocorrendo falta de mão de obra não é justificativa para trazer trabalhadores de outras regiões do país, reservando-lhes um tratamento indigno. Para ter mão de obra especializada é simples: basta remunerar melhor, oferecer treinamento específico, buscar as condições facilitadas do mercado ou das políticas públicas.

No mundo inteiro, paga-se mais por um produto de qualidade e produzido sem agressões aos trabalhadores ou ao ambiente natural. Para os apreciadores de um bom vinho, que viajam até a fronteira para comprar chilenos e argentinos, que sempre tiveram orgulho em oferecer um bom vinho da serra gaúcha aos visitantes de outras regiões do país, a indústria vai ter de fazer melhor e com mais respeito ao trabalho humano. Sem milagre, para passar da água para o vinho, é preciso dedicação (vide documentários), especialização e trabalho digno, para que o vinho não vire vinagre.

(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

Artigos relacionados

ATENÇÃO


1) Sua opinião é importante. Opine! Mas, atenção: respeite as opiniões dos outros, quaisquer que sejam.

2) Fique no tema proposto pelo post, e argumente em torno dele.

3) Ofensas são terminantemente proibidas. Inclusive em relação aos autores do texto comentado, o que inclui o editor.

4) Não se utilize de letras maiúsculas (CAIXA ALTA). No mundo virtual, isso é grito. E grito não é argumento. Nunca.

5) Não esqueça: você tem responsabilidade legal pelo que escrever. Mesmo anônimo (o que o editor aceita), seu IP é identificado. E, portanto, uma ordem JUDICIAL pode obrigar o editor a divulgá-lo. Assim, comentários considerados inadequados serão vetados.


OBSERVAÇÃO FINAL:


A CP & S Comunicações Ltda é a proprietária do site. É uma empresa privada. Não é, portanto, concessão pública e, assim, tem direito legal e absoluto para aceitar ou rejeitar comentários.

10 Comentários

  1. É incrível como alguns comentários meio q defendem o ocorrido. O q ocorreu mostra simplesmente a incompetência gerencial das empresas sobre seus fornecedores seja de mão de obra ou qq outro tipo de serviço ou produto. Isto não tem nada relacionado a impostos, preço e etc… simplesmente são incompetentes gerencialmente falando. Espero q sintam no bolso para tomarem vergonha na cara.

  2. Basta imaginar os estudantes Nutella da UFSM metendo a mão na massa numa vinicola da Serra Gaucha. Obvio que não. Com elevada probabilidade (matematicamente falando) fariam o serviço na França e na Italia. Com todo gosto do mundo. E muitas fotos na rede social.

  3. ‘Para ter mão de obra especializada é simples: basta remunerar melhor, […]’. Obvio que não. Ainda mais no Brasil. Povo sem disciplina que sonha com um trabalho burocratico com salario inchado. Economistas falariam em elasticidade do preço, algo da microeconomia, mas o aumento de remuneração para tornar as pessoas dispostas a um trabalho braçal muitas vezes é proibitivo. Não pode ser transferido ao preço final do produto. Simples assim. A conta tem que fechar. Não é como as pró-reitorias da vida que a conta já vem fechada (é só jogar dinheiro em cima do problema; grana vinda de fora, óbvio). Alas, na Europa não são poucos os estudantes que vão para a colheita da uva para ganharem um troco e por conta da festa. Por lá trabalho não é uma punição biblica (algo que muitos servidores publicos não assimilam). Ou seja, resolver o Brasil por decreto (ou discursos chatos, utopistas e inócuos) não vai acontecer. Copiar outros paises por fatias, sem contexto (principalmente o cultural), tende também a não funcionar.

  4. Partindo do principio que os produtores de uvas não são burros, afinal é o ganha pão deles, mecanização não é possivel em todo e qualquer lugar. Terrenos ingremes/irregulares são problema. Securitização idem. Ou não é possivle ou muitas vezes é muito caro. Motocicletas, por exemplo, até outro dia o seguro era tão ou mais caro do que um automóvel. ‘Novos tempos’ é a mesma coisa que ‘novo normal’, não cansam desta balela de ar condicionado?

  5. Que existe responsabilidade da empresa não se discute. Mas o Estado não pode se eximir, terceirizar a fiscalização. Alas, aburdos não faltam. Sujeito planta batata numa determinada area (historia é veridica, aqui perto). Contrata uma galera para colher a produção. Chegam as ‘otoridades’ e tacam uma multa. Necessario banheiro quimico, refeitorio, etc. Sujeito coloca refeitorio. Coloca banheiros quimicos. Que ninguém usa, continuam frequentando um mato local. Ao final do turno embarcam num onibus e vão embora. Quarenta minutos depois voltam soltos numa boleia de caminhão para furtar batatas. Resultado? Sujeito não plantou mais batatas.

  6. Outro detalhe importante: completos imbecis (talvez não completos, nem nisto conseguem atingir algum grau de competencia) dizem que a escravidão é ‘um mal do capitalismo’. Na China e na Coreia do Norte (como na antiga União Sovietica) os dissidentes eram enviados a campos de trabalho forçados. Motivo? Pensar diferente. Pol Pot tirou a população das cidades e transferiu para o campo para trabalharem em fazendas coletivas. Aqui ainda existem judiciario, etc. a quem recorrer. La o filho chora e a mãe não escuta.

  7. ‘Os produtores e empresários brasileiros precisam se dar conta […]’, generalização. Até parece que a exceção é a regra. Alas, Cooperativa Garibaldi até onde sei era uma cooperativa. O nome completo da Aurora é Cooperativa Vinicola Aurora. Alas, tem que receber o que os cooperativados produzem, inclusive o famigerado vinho ‘Sang de Boeuf’. Alas, qualquer indice dos organismos internacionais vai apontar que o problema da escravidão é muito maior na Asia atualmente.

  8. Não colocou agua no vinho dos aficionados porque é melhor e mais barato consumir vinhos uruguaios, argentinos ou chilenos. Simples assim. Vinho é considerado bebida alcoolica no Brasil, entre diretos e indiretos a tributação bate nos 70% (uns falam em 80%). Ninguém exporta tributos e la fora o vinho ainda ganha subsidios. Alás, tupiniquins copiam costumes ianques. Fast food tem outras alternativas, um pão com salame (muitas padarias e nada de pão industrializado, salame de produção local) ou outro embutido com uma taça de vinho.

  9. Antes de mais nada é necessário apurar o que aconteceu e as responsabilidades. Midia montou um circo (como sempre em qualquer assunto) e não é confiável. MPT também não é confiável, são engajados ideologicamente, ao menos a maioria.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo