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Crianças na panela de Dante – por Marcelo Arigony

O inferno de Alighieri exposto naquela esquina do frango. Vai daí que...

Era quase meio dia de sábado. Resolvemos comprar um frango assado desses de televisão de cachorro. Sim, eles ficam rodando naquela assadeira e os cachorros sentados na calçada, em frente àquele empório do frango, inebriados, hipnotizados pelo rolê daquelas aves apetitosas. E os dali da esquina têm um tempero sem igual. Recomendo.

Pois eu passei um uatizape, e encomendei um frango. Sem acompanhamentos. Os acompanhamentos faríamos em casa. Ensinando as crianças a economizar para os tempos de carestia. E por volta das 13h eu calcei um par de chinelos havaianas e desci para buscar. Nos fins de semana almoçamos tarde.

Estava um calor de rachar, uma panela de pressão, como só Santa Maria pode oferecer. Não estive no inferno. Nem sei se existe. Mas o calor estava como aquele que Dante descreve no sétimo círculo – sangue fervente e fogo ardente. É um dos círculos mais terríveis – a pressão e o calor insuportável – Embora ele reserve aos traidores coisa ainda pior… no Cocito.

Já na calçada, caminhei até logo depois da esquina, impressão de que pisava no granito vermelho-escuro derretido, o passeio estava na temperatura descrita por Alighieri.

Era tarde para o almoço. Quase ninguém na rotisserie. Meu frango esperava embaladito. Frango na mão, pix no balcão. Pus-me em marcha a retornar.

Fora o calor, ia tudo bem. Mas eis que surge uma moça magra e suja, com aparência de usuária de drogas. Abordou-me perto da esquina, e pediu dinheiro. Eu prontamente disse não, imaginando que iria gastar em crack. Segui a passos largos. Depois, já de longe, observei que a alguns metros dela havia uma menina – seis ou sete anos – talvez filha, talvez irmã.

Dali em diante, a meia quadra que caminhei de volta até o prédio onde moro durou légua e meia. Subi pensando naquela criança, naquele calor, na fome, na sede, na escola. Tinha que voltar lá. Mas não daria dinheiro. Aquela mãe (ou irmã) gastaria em drogas, com certeza! Também não podia dar o frango, porque já tinha gente esperando por ele em casa.

Peguei alguns salgadinhos, umas bolachas recheadas e uma caixa de suco, e voltei à esquina. Não estavam mais lá. Caminhei um pouco e as encontrei na quadra seguinte. Ia um séquito, a própria anti comitiva ao sol: um pai puxando um carrinho cheio de lixo escolhido, aquela mulher e umas três crianças na panela de Dante. E aquelas crianças não haviam cometido luxúria, gula, avareza, heresia, violência, fraude ou traição…

(*) Marcelo Mendes Arigony é titular da Delegacia de Polícia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DPHPP) em Santa Maria, professor de Direito Penal na Ulbra/SM e Doutor em Administração pela UFSM. Ele escreve no site às quartas-feiras.

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2 Comentários

  1. Sua atitude foi justa ajudo muito as pessoas de rua. Mas tbm não dou dinheiro. Todos os dias dou comida e água gelada. Tem uns três que vem sempre na frente da minha casa. Nunca deixei de dar a eles comida. Estamos nesse mundo pra ajudar uns aos outros e não julgar ninguém. Parabéns.

  2. ‘Acho que a consciência humana é um trágico passo em falso na evolução. Nós nos tornamos muito autoconscientes. A natureza criou um aspecto da natureza separado de si mesma – somos criaturas que não deveriam existir pela lei natural… Somos coisas que trabalham sob a ilusão de ter um “eu”, aquele acréscimo de experiência sensorial e sentimentos, programados com total segurança que cada um é alguém, quando na verdade todo mundo é ninguém… Acho que a coisa mais honrosa para nossa espécie é negar nossa programação. Pare de se reproduzir, caminhar de mãos dadas para a extinção – uma última meia-noite, irmãos e irmãs optando por sair de um acordo injusto’. Rust Cohle, True Detective, primeira temporada.

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