Hora de dormir, quando o filho reclama da fome, que história a mãe conta? – por Carlos Wagner
“A fome é um problema grande demais para ser esquecido pelos noticiários”
A volta do Brasil ao mapa da fome desapareceu dos jornais, sequer ficou no pé da página. É um problema grande demais para ser esquecido pelos pauteiros dos noticiários, porque atinge mais de 30 milhões de brasileiros, sendo que uma grande parte são crianças e adolescentes.
O período que mais se falou no problema foi durante a última campanha eleitoral, permanecendo nas primeiras páginas durante as semanas iniciais do atual governo. Depois foi desaparecendo e, nos dias atuais, uma vez ou outra é lembrado no meio de uma matéria. Muito bem, é do jogo que os governantes e parlamentares estejam dedicando o seu tempo aos grandes temas nacionais, como economia e segurança pública.
Mas a imprensa não pode se omitir. Precisamos lembrar aos governantes, deputados, senadores e outras autoridades o que está acontecendo entre as quatro paredes das casas onde os pais não têm nada para dar de comer aos seus filhos. Precisamos diariamente dar um rosto e contar a história por trás dos números que publicamos sobre a fome.
Sei como as coisas funcionam dentro das redações, onde trabalhei como repórter investigativo por quase quatro décadas. Aprendi que a disputa é feroz por espaço no noticiário e por dezenas de vezes ouvi dos editores que as páginas do jornal não são de elástico para que possam ser espichadas e acomodar todos os assuntos.
Uma explicação para quem não é do ramo. Nos tempos das máquinas de escrever nas redações, quando os jornais publicavam apenas a edição em papel, os editores usavam a história do elástico para se livrar do assédio dos repórteres. Voltando a nossa conversa. Os tempos mudaram com as novas tecnologias. O jornal de papel está virando peça de museu. Mas a luta por espaço nos noticiários continua tão feroz como era antes.
Há duas maneiras do repórter conseguir espaço nos noticiários. Uma delas é chutando as canelas dos editores. A outra é ser criativo e apresentar uma pauta com um olhar diferente sobre algum assunto. Já vi, li e ouvi muitas matérias sobre a fome. O que está fazendo falta é colocar um repórter a viver com uma família com filhos, durante 24 horas, para documentar como é não ter comida para as crianças.
Lembro-me que quando uma mulher, em uma favela, foi entrevistada por uma repórter, ela contou como era triste segurar a mãozinha de um filho pequeno e tentá-lo fazer dormir enquanto ouvia ele reclamar que estava com fome. Na entrevista, a mãe não revelou qual a história que conta para fazer o filho esquecer a fome e dormir.
A entrevista dela me lembrou uma ocasião em que eu estava fazendo a cobertura de um conflito de terra envolvendo 1,5 mil famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no interior do Rio Grande do Sul. Os sem-terra estavam cercados pela Brigada Militar (BM), como os gaúchos chamam a polícia militar.
Andando pelo acampamento tive a minha atenção despertada por algumas crianças que brincavam com umas pedras como se elas fossem carrinhos e bonecas. Perguntei para a mãe deles sobra as pedras. A história que ela me contou não esqueci e creio que vou levá-la pelo resto da vida. Disse-me que, no Natal, ela colocou as pedras debaixo da tarimba (cama improvisada) das crianças e quando elas acordaram contou uma história sobre brinquedos que viraram pedras.
Na época, fiz uma matéria contando a história das mães e seus filhos no acampamento dos sem-terra. Histórias sobre as mães de famílias que estão passando fome podem ser encontradas em organizações não governamentais, postos de saúde pública, centros de assistência social de igrejas (católicas e evangélicas), terreiros de umbanda e no pequeno comércio nas favelas.
Se a imprensa conseguir dar um rosto para as 30 milhões de pessoas que passam fome o tema entrará ao natural na discussão dos parlamentares e governantes envolvidos com as grandes questões nacionais. Por que faço essa afirmação? Porque o desemprego é o principal culpado pela volta do Brasil ao mapa da fome. E, por ser um assunto econômico, faz parte da principal pauta em debate entre o governo e a oposição.
A fome é um dos motivos da urgência dos parlamentares votarem o arcabouço fiscal e a reforma tributária. Dois assuntos fundamentais para o país voltar a crescer. Em um exame sem profundidade nas matérias que temos publicado sobre as articulações políticas para a votação desses dois assuntos salta aos olhos a falta de uma lembrança da urgência das autoridades para resolverem a questão da fome.
O que mais publicamos são as conversas a respeito das barganhas entre parlamentares e governo. Entre os colunistas políticos dos grandes jornais dá para contar nos dedos de uma mão aqueles que fazem uma análise da situação citando a urgência em resolver o problema da fome.
Lembro o seguinte: quando os terminais de computadores substituíram as máquinas de escrever nas redações, aqueles que acreditaram se tratar apenas de um avanço tecnológico acabaram comprometendo a sua profissão. Ali aconteceu uma mudança muito grande, vou citar apenas o que considero mais importante.
Até então, para se ter acesso a uma pesquisa era um horror. Para conseguir uma informação era preciso solicitá-la ao departamento de arquivo e dois dias depois chegava a resposta. Hoje basta apertar uma tecla e no mesmo instante se tem acesso a uma enxurrada de informações. O nosso trabalho foi muito facilitado.
Portanto, devemos usar isso para explicar melhor ao leitor os motivos pelos quais as coisas acontecem. O retorno do Brasil ao mapa da fome é uma realidade que precisa voltar a ser lembrada no debate político. E os únicos que podem lembrar os congressistas e as autoridades do governo disso somos nós. Basta apertamos uma tecla para termos acesso aos dados e ir a uma favela falar com uma família.
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(*) O texto acima, reproduzido com autorização do autor, foi publicado originalmente no blog “Histórias Mal Contadas”, do jornalista Carlos Wagner.
SOBRE O AUTOR: Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo, pela UFRGS. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.
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