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Trezentos – por Orlando Fonseca

O escritor e a dificuldade de competir com as fake news

O número do título, ao ser anunciado pelo editor semana passada, levou-me direto para os livros, a literatura, o mito, a História. Talvez porque estejamos vivendo os dias heroicos da Feira do Livro, que resiste ao mau tempo. No entanto, com certeza, porque este é um cacoete – para não dizer uma ferramenta de cronista – que tenho adotado há mais de quatro décadas, diante da necessidade de dar curso a um pensamento que me leve a aprontar um texto com cara de literatura, mas com as dimensões exigidas por um jornal ou site de notícias.

Naquela “viagem” que anunciei acima, vieram à mente o rei grego, Leônidas, e seus trezentos na batalha de Termópilas contra o temido exército persa, comandado por Xerxes. Antes de conhecer estes seres humanos – muito humanos – que as aulas de História colocaram no meu imaginário, já conhecia outros trezentos, estes escolhidos pelo próprio Deus de Judá, através de um método muito peculiar empregado por seu servo Gideão.

Ao menos é o que está escrito nas páginas sagradas do Velho Testamento. Tudo isso para dizer que esta é a crônica de número 300, segundo Claudemir Pereira que comanda, humanamente, este portal. Heroísmo são outros quinhentos.

Se bem que não tem sido nada fácil para um escritor competir com a fábrica de fake news. Disputar a mente de pessoas que aceitam o lugar comum, a bizarrice e a falta de noção como argumentos é uma luta. A literatura – combustível deste gênero menor – sempre buscou no mito, na fantasia e na retórica o seu modo de dar vida ao seu produto artístico.

Como visa ao prazer estético (a beleza e não a verdade, como diria outro grego sabido, Aristóteles), o que predomina é a invenção através das palavras, em arranjos inusitados, combinados pela imaginação do autor, contando com a participação ativa do leitor. Desse modo, com a banalização do inventado sobre o relato dos fatos pelas redes sociais, tudo vira uma geleia geral, e o artístico corre o risco de virar notícia ou meme, anedota digital.

A versão do cronista, segundo os especialistas, é o resgate da porção de fantasia imanente do cotidiano. Eu diria que para o bem, a fim de qualificar a opinião e não para esculachar a realidade. No entanto, a fertilidade da imaginação negacionista, fascista, embaralhou tudo na falta de compromisso com a realidade.

Quando iniciei esta trajetória que me trouxe a este site, datilografava o texto em uma máquina de escrever, e precisava levar as laudas (folhas escritas) ao jornal. Era 1977, e o periódico que estampava a minha crônica já nem existe mais há anos: O Expresso. Depois passei pelas páginas de A Razão – que também já encerrou suas atividades – pelo Portal Terra, pelo Diário de SM – onde continuo – e por este site que me abriga há alguns anos.

A ideia de espalhar notícias falsas era, naqueles anos, uma bizarrice impensável. Havia os boatos – que estes são antigos na história da humanidade – mas não era comum a noção de tomá-los como base para agir na sociedade. O jornalismo era praticado com mais critério, e as informações circulavam com mais cuidado ou, ao menos, com a desconfiança geral.

Por isso, precisei estudar os mestres do gênero para saber como deveria proceder para entregar um texto que tivesse um pé na literatura e outro no jornalismo. Porque o nosso poeta maior, Drummond, já havia cunhado a missão definitiva deste tipo de escriba: é da notícia e da não-notícia que se faz a crônica.

Naquela época, “não-notícia” estava muito longe de ser o que conhecemos hoje como “fake news”. Tinha muito a ver com a capacidade lírica, ficcional e argumentativa – emoção em vez de razão – dos seus autores, tais como Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e tantos outros.

Não viso ao heroísmo, por suposto, mas tenho todo orgulho de ter vivido até aqui com este compromisso semanal de produzir um texto que possa resgatar da História, da literatura, da tradição oral, heróis e suas façanhas para iluminar um cantinho desse nosso cotidiano.

E sem você, caro leitor, nada disso seria possível, porque arte não é monólogo, e mesmo o mínimo de arte que possa haver em uma crônica, esta busca o diálogo com as mentes abertas, para que a sua verdade aconteça. E vamos para outros trezentos.

(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

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5 Comentários

  1. Para não dizer que não falei das flores. Da série ‘problemas que se autoresolvem’. Universidades Federais tem cotas. De diversos tipos. Basicamente quem não conseguiria indices para cursar o ensino superior ganha, sob certos criterios, uma vaga. Obvio que este pessoal necessitaria de um ‘nivelamento’ (que não aconteceu em muitos lugares). Tentar recuperar o tempo perdido. Até aqui em SM não faltou quem falasse que ‘não há diferença entre cotistas e não-cotistas’ (algo duvidoso; a menos que o nivel geral seja baixo de forma igual, o que não é nenhuma novidade). Como o que importa não é o resultado e sim a estatistica, se o pessoal não consegue saltar o sarrafo, baixa-se o sarrafo.
    https://fisenge.org.br/escola-politecnica-da-ufrj-vai-mexer-no-curso-de-calculo-para-reduzir-taxas-de-reprovacao/

  2. ‘Fake News’ é o espantalho que estão utilizando para justificar a implantação da censura. Simples assim. Perpetuação no poder. Segurança do establishment. Os fatos inventados que misturam com as opiniões (e que não são desmentidos por ‘jornalistas’ por conta da conveniencia, do ‘cumpanherismo’ ou simplesmente da amizade) tornar-se-ão ‘verdades’.

  3. Brasil não produz mais Drummonds. Ou Rubem Bragas, Fernando Sabinos, Paulo Mendes Campos. O tempo deste tipo de comunicação passou? Ou a submediocridade de hoje fez os leitores se afastarem?

  4. Não sei de caso na urb de alguém que tenha falado contra as ‘fake news’ e não tenha, ao menos semanalmente, inventado fatos ao emitir opiniões. Sim, se a realidade não condiz com a ideologia só pode estar errada. Os ‘humanos’ tem que fazer os ‘não-humanos’ evoluírem, a censura é para o proprio bem deles. Crianças que devem ser levadas pela mão.

  5. Cacoete comum na urb é pessoas com uma certa visibilidade contando fatos da propria vida que a grande maioria gostaria de ignorar. Indo ao âmago da coisa, cita-se historia e a Biblia (para mostrar ‘erudição’). Depois a ‘modéstia’ de classificar o que é humano ou não.

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