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Quem sabe é a minha garotinha – por Marcelo Arigony

“- Não mãe, não desliga. Sou eu, tua garotinha. Sou eu mesma. Eu fui presa”

– Alô mãe. É a Edna.

– Edna? Mas que número é esse? Esse não é o número da Edna. Vou desligar. Isso é golpe…

– Não mãe, não desliga. Sou eu, tua garotinha. Sou eu mesma. Eu fui presa. Tô na delegacia. Esse número é da Jezé, a advogada. To ligando do telefone dela. Tem que pagar a Jezé…

– Presa?! Que é isso Edna? Brincadeira sem graça? Como assim presa? Presa por quê? Quem é Jezé?

– Mãe, fui presa porque tava esperando o ônibus da escola. Aí uns broder me deram uma carona, e tavam com “doce”… ãh…“bala” mãe. Eu tava junto. Eles foram buscar pra festa. Eu tava no carro. Aí a polícia nos pegou. Apreenderam tudo. Preciso que tu venha aqui. Traz umas roupas que tá frio. E eu vou baixar. Cadeia feminina. E traz um dinheiro pra Jezé. E mais um pouco de dinheiro que eu vou precisar lá na cadeia. Tá gelado aqui mãe, tô de pé descalço…

– “Bala”? Que “bala”? Cadeia? Quem é preso por ter “bala”?? Que broder? Quem é o broder? Era pra tu estar na faculdade essa hora? Por que tá de pé descalço?

– É que apreenderam meu tênis. Tinha caído umas “bala” dentro. “Bala” é um tipo de droga mãe. Bem levinha. Só pra animar a festa. Não dá nada. Foram buscar pra dar um brilho. Mas aí a polícia nos pegou.  E acho que vamos precisar de mais um pouco de dinheiro mãe. Porque era bastante “bala”, e o outro broder que mandou a gente levar pra festa… ele já mandou avisar aqui que tem que pagar. Se não pagar eles vão matar os guri lá na cadeia, ou quando saírem…

No primeiro semestre de 2023 chegamos à autoria de todos os 32 homicídios que eram da atribuição da nossa delegacia em Santa Maria. Uma rápida análise revela que têm as drogas como combustível, e as disputas de poder como comburente. Na maioria adolescentes e adultos jovens, matando e morrendo na batalha campal das tribos urbanas.

Muitos nasceram em situação de vulnerabilidade social – ou familiar – que não permitiu a tomada de outro caminho. Outros tantos vão sponte propria buscar essa senda nefasta. Crianças que vão em busca de malandragem, na maconha, nas “bala”, na cocaína e em outras drogas, só para animar a festa. Ninguém do grupo é viciado, ninguém é traficante, os broder vão lá buscar só pra dividir com a galera…

Quando conhecem a verdade já perderam a tarde inteira, emaranhados em uma situação funérea que vive de pileque, e não tem mais tempo pra cantar… E muitas vezes arrastam juntos a família, que fica rezando baixo pelos cantos.

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É nesse contexto que o STF está prestes a descriminalizar o uso de drogas. Há muito percebi que a estratégia com relação ao tráfico e uso de drogas está equivocada. Mas descriminalizar o uso e seguir proibindo o tráfico? Seguimos essa conversa na próxima semana.

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Quem sabe eu ainda sou uma garotinha

Esperando o ônibus da escola, sozinha

Cansada com minhas meias três quartos

Rezando baixo pelos cantos

Por ser uma menina má

Cássia Eller

(*) Marcelo Mendes Arigony é titular da Delegacia de Polícia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DPHPP) em Santa Maria, professor de Direito Penal na Ulbra/SM e Doutor em Administração pela UFSM. Ele escreve no site às quartas-feiras.

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4 Comentários

  1. Qdo tinha os bailes de formatura do ensino médio passamos por uma situação semelhante, meu filho de 15 anos ligando q estava na delegacia, quase infartei até chegar ao encontro dele e de quase todos do baile q tb estavam ali, meninos de ternos e meninas de vestidos, foram levados pq compararam bebida alcoólica na distribuidora, mas estavam como vítimas segundo a polícia, pois em um sofá estava os donos das distribuidoras pois ñ deviam vender para menores….foi um choque mas não tratei meu filho como vitima e recebeu castigo, pois deixei dentro do clube dores com todas as recomendações.

  2. ‘Sei que o Direito Penal é uma mal, mas ainda é o que temos. Então vamos ter que conviver com ele por muito tempo […]’. Unica conclusão que cheguei é que existe um problema de comunicação (o que tem a ver a permanencia do DP e o ‘coitadismo’). Talvez um pouco mais de objetividade resolvesse. Sim, porque o direito penal previne ate a pagina dois. Lida com consequencias na maioria dos casos. STF vai liberar, pelo que parece, a maconha. No Uruguay liberaram, não resolveu o problema do trafico e o consumo aumentou. Sempre existe um ‘produto melhor’. Nos EUA liberaram mas muitos que vendem não legalizaram a operação (pagar tributo para quê?). Alas, existe a Convenção das Nações Unidas contra o Trafico Ilicito de Drogas Narcoticas e Substancias Psicotropicas de 88. STF vai liberar porque o pessoal do juridico vive em Narnia. Alas, já existem outras substancias (K9 por exemplo) em circulação. Os opioides não entraram no mercado porque o crime organizado não deixou/não quis. Imprensa nacional esta amorcegando, mas o CV esta invadindo a Bahia e esta em guerra com o BDM. É a mexicanização do territorio nacional devido a medidas para ‘diminuir a violencia’.

  3. Autor é abolicionista. É da turma ‘a guerra contra as drogas não funcionou’. É da turma ‘drogas é problema de saude publica’. É da turma ‘basta liberar tudo que seus problemas acabaram’. É da turma ‘vale tudo, vamos prender só os inimigos do sistema/governo’. É da turma ‘para salvar 8% vamos ferrar com a vida dos outros 92%’. Unica justificativa será uma polyannice.

    1. Mas não sou mesmo. Sei que o Direito Penal é uma mal, mas ainda é o que temos. Então vamos ter que conviver com ele por muito tempo em falta de algo diferente.. E seguimos 🚀

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