Artigos

Pampa – por Orlando Fonseca

Por terem encontrado aqui uma vasta região exuberante, pródiga e bela, os primeiros moradores do Rio Grande do Sul chamaram-na de Pampa, como o faziam os habitantes do outro lado do Rio da Prata. Um dos últimos territórios inabitados do Planeta a serem colonizados serviu de inspiração a muitos trovadores, compositores e cantadores. Traziam na bagagem, de outras terras e de outras culturas, ritmos e melodias populares que serviram de base para o que consideramos hoje nossa canção nativa. Desse deslumbramento atávico é que nos orgulhamos ao estufar o peito e celebrar, com o cantor Leonardo: “É o meu Rio Grande do Sul, Céu, sol, sul, terra e cor”. Em meio à semana dedicada a esta nossa gente, soam dissonantes os versos, que mais parecem uma ironia histórica: “Fazer versos cantando as belezas desta natureza sem par/ E mostrar para quem quiser ver um lugar pra viver sem chorar”. O telurismo deu lugar a uma enxurrada de reações desta mesma natureza. O que nos faz refletir sobre a necessidade de dar novos significados a tudo o que nos fez gaúchos, em meio aos festejos da data comemorativa de nossa identidade gauchesca, em face dos eventos da Revolução Farroupilha.

Embora estejamos, neste momento, tirando a lama das ruas, tentando reerguer casas, vidas e empresas, pelas fortes chuvas e grande enchente no Vale do Taquari, em janeiro deste ano (assim como nos últimos anos), tivemos uma estiagem severa. A Defesa Civil do Estado contabilizou estragos nos períodos de verão, dos anos de 2020, 2021 e 2022/23, levando diversos municípios à Situação de Emergência, com decretos homologados pelo Governo do Estado. A Natureza tem lá seus caprichos, mas o regime de chuvas no Estado tem-se alterado pela ação do ser humano. São duas as frentes principais: a que tem origem no sul está prejudicada pela elevação da temperatura no Pacífico (fenômeno El Ninho), e a que tem vindo da Amazônia vem sofrendo com o desmatamento, pois os chamados “rios voadores” estão reduzidos pela falta da umidade colocada na atmosfera pelas grandes árvores.

E agora, nos noticiários pelo país, um dos maiores desastres naturais dividem o espaço com as comemorações da Semana Farroupilha. As enchentes, na região do Vale do Taquari, foram resultado de um ciclone extratropical. O fenômeno, que provocou a vazante dos rios, destelhamento de casas, queda de árvores e mortes, foi causado por sistemas de baixa pressão atmosférica. Até mesmo em terras santa-marienses o pequeno Vacacaí Mirim nos lembra que já foi um grande curso d’água. Na área metropolitana, as águas dos rios Guaíba e Gravataí, ocuparam ruas de Porto Alegre, afetando ainda as ilhas que compõem o Delta do Jacuí. Foram mais de 100 cidades nas bacias dos rios Taquari, Jacuí, Caí e Vale do Paranhana. No rastro de destruição, já são quase 50 pessoas mortas, além de 4.892 desabrigados e 20.959 desalojados.

Foi de tanto plantar que grande parte da região sul foi se desertificando, e por lá, já não se colhe nada. A monocultura esgotou a terra pródiga. Em terras que serviram de inspiração para a alma pampiana, hoje rios, como o Ibirapuitan, ameaçam casas, pontes, ruas e o povo, ameaçando calar o canto gauchesco e brasileiro. Em parte, os fenômenos que modificam ventos e umidade vindos do Pacífico devem-se às ações humanas que contribuem para o aquecimento global. Tudo o que nos emociona e nos ufana nesta Terra, a mais meridional do Brasil, merece o respeito e o cuidado que temos para com nossas tradições, na mesma medida. Sob pena de não termos o que legar, em beleza e produtividade, para as futuras gerações.

Cabe-nos mais uma vez, como povo, a luta cotidiana para salvar a terra, como vemos registrado no cancioneiro guasca e nas poesias e cantos da gesta farroupilha. Dentre as celebrações deste 20 de Setembro, podemos ressignificar os versos de Jader Moreci Teixeira (o Leonardo já citado): “Onde tudo que se planta cresce e o que mais floresce é o amor.” Reforçar, nessa virtude, o sentido da solidariedade, para incrementar as campanhas em favor das populações afetadas pelas intempéries no Vale do Taquari.

(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

Artigos relacionados

ATENÇÃO


1) Sua opinião é importante. Opine! Mas, atenção: respeite as opiniões dos outros, quaisquer que sejam.

2) Fique no tema proposto pelo post, e argumente em torno dele.

3) Ofensas são terminantemente proibidas. Inclusive em relação aos autores do texto comentado, o que inclui o editor.

4) Não se utilize de letras maiúsculas (CAIXA ALTA). No mundo virtual, isso é grito. E grito não é argumento. Nunca.

5) Não esqueça: você tem responsabilidade legal pelo que escrever. Mesmo anônimo (o que o editor aceita), seu IP é identificado. E, portanto, uma ordem JUDICIAL pode obrigar o editor a divulgá-lo. Assim, comentários considerados inadequados serão vetados.


OBSERVAÇÃO FINAL:


A CP & S Comunicações Ltda é a proprietária do site. É uma empresa privada. Não é, portanto, concessão pública e, assim, tem direito legal e absoluto para aceitar ou rejeitar comentários.

8 Comentários

  1. O busilis todo desta historia é que as mudanças climáticas não acontecem em cima do nada. População já esqueceu a cheia de 1941 que aconteceu em POA, por exemplo (fotos no Google). Logo o pensamento passa de ‘faz tempo que não acontece’ para ‘não vai acontecer mais’. Queriam até derrubar os muros do Cais Mauá (não sei se resolve o problema, tem mais esta) porque ‘são muito feios’. O que leva a outros debates, estética (discutivel diga-se de passagem) ‘na frente’ da funcionalidade. Ideias acima das possibilidades. Soluções ‘simbolicas’ de problemas reais.

  2. Existe a questão do cancioneiro. Movimento Nativista foi (e é) algo de classe média urbana. Sem falar na mudança de costumes, a grelha substituindo o espeto e, ultimamente, a parrilla substituindo a grelha (para quem tem pode aquisitivo). Divago. Fase ambientalista da esquerda, seguindo tendencias internacionais, começou na decada de 70. Oitava California (1979), ‘Suplica do Rio’, ‘Não deixem morrer meu rio/Me ajudem por favor!!!/O biguá que mergulhava, já morreu/Água pé não dá flor.’ Rumos Perdidos 11ª California (1981), ‘Cuidado com a terra, que a volta virá/Semeando desertos, ninguém colherá’. Musica de Leonardo é de 1978, 3ª Ciranda Teuto Rio-Grandense de Taquara. Não necessariamente a primeira divisão de festivais.

  3. ‘Cabe-nos mais uma vez, como povo, a luta cotidiana para salvar a terra […]’. Que luta? Vermelhos com o papo ‘temos que terminar com o capitalismo para salvar o planeta’. Grande massa indiferente. Quem decide sabe que não é bem assim, transição tem que ser mais lenta sob pena de causar um desestabilização politica que vai resultar em nada de bom. Alas, cometer textos e falar abobrinhas não é ‘lutar’, muda nada no universo.

  4. Desertificação é um termo improprio. Sim, porque a precipitação de chuvas não é igual a de um deserto. O termo correto é areização. Que, segundo trabalhos da UFRGS, esta mais ou menos estabilizada. Area atingida é algo como 3,7 Km2 (com 1,6 Km2 suscetiveis de sofrer o mesmo destino). RS tem 282 mil Km2 (pouco menos que isto). Alas, a areia já esta la, só perde a cobertura vegetal. Sudoeste do RS, perto da savana. Que, ao que tudo indica, deve ser o destino da Amazonia.

  5. Rio Grande do Sul é Pampa na metade sul. Na outra parte, teoricamente, é mata atlantica. Com uma ponta de savana na Barra do Quarai.

  6. ‘O que nos faz refletir sobre a necessidade de dar novos significados a tudo o que nos fez gaúchos […]’, a ladainha de sempre. Quando um vermelho fala ‘precisamos refletir’ o assunto se encaminha para a ideologia. Hora de dizer ‘quem reflete é espelho, tenho mais o que fazer’. Quem gosta de sermão vai na missa.

  7. Uma das maneiras de aumentar a ignorancia na população é disseminar informações sobre assuntos sobre os quais se tem pouco ou nenhum conhecimento. Inclui o pessoal que só se informa através da midia ignorante. Militantes e ‘intelectuais’ de plantão também colaboram, para eles não importam os fatos, importa o efeito final que a informação falsa terá.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo