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Narrativas putinescas – por Orlando Fonseca

Quando se trata de contar o que aconteceu (e o que não aconteceu) a vida imita a arte. E se o conteúdo se refere a guerras, então, a fantasia serve aos interesses de todos os lados envolvidos no conflito. Aliás, a literatura – como arte escrita – nasceu na antiguidade grega, pela necessidade de registrar o havido e o acontecido. No entanto, colocar no mesmo cenário deuses e heróis parece mais uma invenção muito bem elaborada. E as primeiras obras literárias informam a respeito de uma guerra – de Troia – que até hoje, alguns milênios depois, não se sabe ao certo se existiu mesmo. Digo tudo isso para me referir às notícias e aos comentários que geram as guerras no Leste Europeu e Oriente Médio. A última que me chamou a atenção foi a manchete, semana passada, dando conta que Putin – dublê de Czar russo – retirou a assinatura do Tratado de Proibição Total de Testes Nucleares, composto em 1996. Dito assim, recortado do contexto histórico, acrescenta mais alguns predicativos não elogiosos ao presidente da Rússia. A arte da guerra, inclusive, comporta uma disputa de narrativas e de versões.

Lembremos, em primeiro lugar, que os EUA, embora tenham assinado, nunca ratificaram sua posição. O que aconteceu, agora, foi uma decisão do Parlamento Russo, revertendo sua ratificação, a pedido do seu líder, a fim de “espelhar” a posição dos Estados Unidos. Assim como aconteceu com a invasão da Ucrânia, como resposta ao avanço das posições da OTAN em direção à fronteira da Rússia – por mobilização dos EUA – o gesto de Putin é interpretado, no laconismo das informações midiáticas ocidentais, como uma atitude de beligerância do tal “neo czar”, e que o faria saudoso do poder da antiga federação das repúblicas soviéticas. Assim como as invenções literárias surgiram com os gregos, a dramaturgia também, e daí podemos aprender com um de seus autores, Ésquilo: “a primeira vítima de uma guerra é a verdade”.

Estamos à mercê das invenções sofisticadas, oriundas dos algoritmos poderosos da Inteligência Artificial. Contudo, é das mentes humanas – muito humanas, como diria o filósofo – que temos visto e lido o produto da criação de narrativas sobre a realidade no mundo atual. De certas notícias surgem certas figuras da política internacional como se fossem personagens de um filme de ficção. Antes de tudo, reafirmo que não tenho apreço algum pelo líder russo, que deploro a existência da guerra, de resto o atestado da falência da racionalidade e do humanismo. No entanto, é preciso reafirmar que a responsabilidade da mídia séria é não reproduzir o sistema das redes sociais, carregadas de argumentos do senso comum e do negacionismo. Veja-se, no momento, toda a narrativa sobre a guerra em território palestino, como garantia do direito de Israel em reagir. O ataque ao Hamas se dá como uma obrigação, que ganha manchetes e comentários, sem que haja uma linha sobre o braço armado do sionismo internacional, no período anterior à criação do Estado de Israel. Hoje, levantar o histórico terrorista dos grupos Irgun, Haganah e Lehi, passa a ser visto como antissemitismo.

Em nossa paróquia e adjacências, temos o mesmo tipo de guerra de narrativas. Na Argentina, temos Milei, um anarquista pero no mucho, e ao mesmo tempo temos um Massa, que não é tão massa assim, e o futuro pós eleição por lá é uma incógnita. Por aqui, os julgamentos do 8 de janeiro são acusados por alguns de “tribunal de exceção” (como se o ataque ao estado de direito não merecesse um tratamento à altura). Quando se trata da defesa da democracia é preciso ir além das bombas semióticas, e tomo o Putin como simbólico, para além do bode expiatório das manchetes. Bem, e então, a partir de agora, o que virá? O Armagedon? Ao menos, se dermos crédito à narrativa bíblica, é o que se anuncia no horizonte. Pode ser que o apocalipse venha dessa mixórdia toda, mas uma coisa é certa: sem inteligência humana, sem racionalidade, a guerra vai levar à destruição da humanidade – se é que, na falta de diálogo, na proliferação de inverdades ela já não tenha perecido, e só temos as bestas-feras armadas até os dentes nos territórios conflagrados (reais ou imaginados).

(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

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6 Comentários

  1. Todo dia alguem decreta o fim do mundo. Um dia alguem acerta. Guerra não é falta de dialogo, é sintoma de dialgos que não deram certo.

  2. Milei é anarcocapitalista, ou seja, um liberal extremo. Massa é mais do mesmo e o futuro lá não é uma incognita, vai dar m.

  3. ‘[…] uma linha sobre o braço armado do sionismo internacional, no período anterior à criação do Estado de Israel.’ ‘Divida historica’ e seus congeneres não são lei da gravidade. E apenas mais uma bobagem no conjunto que a esquerda defende.

  4. ‘[…] algoritmos poderosos da Inteligência Artificial.’ Muita fake news a respeito. Inclusive de ‘especialistas’. Há algoritmos, ha inteligencia artificial (e seus algoritmos). Mas também existe quem utilize dos termos para criar narrativas. Gente que não sabe o que é um e o que é outro.

  5. ‘[…] acrescenta mais alguns predicativos não elogiosos ao presidente da Rússia.’ Garanto que ele dorme na pia mascando bombril.

  6. ‘[…] parece mais uma invenção muito bem elaborada.’ Aconteceu, não ‘conspiraram’ para que tivesse efeito. Iliada (como a Odisseia) muito provavelmente é o registro de antiga tradição oral. ‘[…] não se sabe ao certo se existiu mesmo.’ Não como esta descrita na literatura, mas existe uma base historica. Vide achados Hititas.

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