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Turismo doméstico – por Orlando Fonseca

Não é tempo de falar em claustrofobia, já que estamos experimentando, por longo tempo, o isolamento social. E diante dos apelos feéricos do verão, ficar trancafiado em casa pode nos deixar malucos, mas pode nos livrar de coisa pior. Então vou falar de turismo doméstico, dando um novo conceito ao termo, normalmente usado pela indústria cultural para indicar deslocamentos territoriais próximos. Para isso vou invocar um mestre, ou melhor o Maistre, Xavier de Maistre. Não serei o primeiro (só para tornar mais erudita esta singela crônica), pois o maioral da nossa literatura nacional, o pai-de-todos, Machado de Assis, assim o fez com Memórias Póstumas de Brás Cubas, e antes dele outra grande figura literária em língua portuguesa, Almeida Garrett, em Viagens à minha terra.

Quando a maioria dos escritores europeus navegavam nas águas do Romantismo, Xavier de Maistre, com sua obra peculiar, Viagem ao redor do meu quarto, publicada em 1794, se apresenta com um narrativa de viagem inusitada, inaugurando uma forma de literatura em prosa que seria conhecida no século seguinte como realista. Sua técnica envolvia o uso da imaginação, com toques de humor, para sobrepujar o desejo de evasão romântica. É importante destacar que, desde sempre, a “viagem” tem sido um mote para a literatura, tanto no seu sentido original de visita a novos lugares, quanto nos delírios ficcionais do experimentalismo modernista. E isso desde Homero, na Grécia antiga. Não à toa, “Odisseia” passou a ser uma palavra associada à aventura, porque, naquela obra seminal da literatura ocidental, temos o relato da viagem do retorno de Ulisses à sua terra natal, ilha de Ítaca, após o fim da guerra de Troia. Ao mesmo tempo, trata-se da viagem de Telêmaco em busca do pai, que já se demorava dez anos para retornar ao convívio da família, dele próprio e sua mãe Penélope.

Os deslocamentos estão no cerne da aventura e dos descobrimentos, com Marco Polo ou com Colombo. Estão na ficção científica do século XIX, com Júlio Verne, cujas influências podemos observar, por exemplo, nas incursões imaginativas pelo pátio – o quintal carregado de mistérios – da turminha criada por Lobato, no Sítio do Pica-pau Amarelo. O pesquisador alemão, Walter Benjamin, fala dos dois tipos clássicos de narradores, o que viaja (e por isso tem o que contar de outras terras) e o que permanece no lugar (por isso guarda a memória da aldeia). O poeta português, Fernando Pessoa, ao tecer loas ao espírito das viagens das grandes navegações portuguesas, critica quem fica em casa.

Nesse sentido, ficar trancado é o contrário da aventura, mais propício ao drama, como vemos em Cortázar, no seu conhecido conto, “Casa Tomada”, publicado em Bestiário: dois irmãos vivem em uma casa, cuidando de todos os cômodos com muito zelo. De repente, uma parte da casa é tomada e, quando Irene e o irmão se dão conta, toda a casa foi tomada e a eles não resta outra coisa senão partir. Outro escritor latino-americano, Roberto Bolaños, apresenta em Amuleto, os conflitos de uma personagem escondida no banheiro feminino da Faculdade de Filosofia e Letras, na cidade do México, por muitos dias, escapando da fúria repressora dos invasores.

Mas não temos alternativas nestes tempos de pandemia: ficar em casa, ou dar uma volta de carro pela cidade e vê-la passando ao revés, pelas janelas do veículo. Abrigados em nossa cidadela, temos de olhar para dentro, como o fez a personagem de Maistre. Fazendo isso vamos encontrar o que há de humano em nós. E seria um desperdício não aproveitar a viagem para aprimorá-lo. Tudo isso que está aí fora, e que nos chega pela mídia, vai passar. Então precisamos estar preparados para o que é permanente: o convívio social, talvez no primeiro momento, com a euforia de ser alforriado do isolamento social. Mas depois precisamos melhorar em conjunto.

*Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

Crédito da imagem: Editora 34.

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