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Heureka – por Orlando Fonseca

“É importante, enquanto é tempo, lutar contra a perda de memória...”

Estamos em Siracusa, em algum momento do século II a.C., e o Arquimedes está há horas no banho. Imaginemos o cientista grego em sua banheira, os olhos fixos na tela do celular, rolando a tela infinita. Até já esqueceu o desafio que o Rei Hierão II havia proposto, distraído com os memes do Tik Tok, as fotos do Instagram e as fofocas das redes sociais.

Se assim fosse, jamais teria descoberto um princípio da física que o tornaria imortal, jamais teria pronunciado a frase famosa, que ainda hoje está nos livros didáticos, dando conta da euforia que costuma acompanhar uma grande descoberta: Heureka!

Por suposto, não havia o celular ainda, e felizmente o matemático tinha mais tempo para descobrir este e outros princípios (como o número Pi). A lenda nos conta que ele levantou da água, esqueceu a toalha e saiu nu, correndo pelas ruas e gritando eufórico: “Heureka! Heureka!”. Como não tinha uma telinha para distraí-lo, ao mergulhar na banheira, observou que houve um deslocamento ascendente do nível da água.

Isso o levou a formular o tal princípio com seu nome, resolvendo a questão do peso da coroa, proposta pelo rei: para medir o volume da coroa bastava mergulhá-la e calcular o volume de água deslocado. Heureka! (encontrei, descobri).

O êxtase das descobertas apareceram ao longo dos séculos até a modernidade. Já que o celular passou a ser depositário da atenção geral só neste século XXI, muitas das invenções ou descobertas científicas, ao longo de dois milênios, não estariam aí sequer para ajudar a invenção do dito cujo.

Tenho resistido, quanto posso, em consultar o Google para tentar lembrar de qualquer coisa. Ao meu redor, quase todo mundo o consulta assim que se vê em tal dificuldade. Com isso não percebem que a memória, essa em nossa mente, formada por nossos neurônios, vai perdendo função pelo desuso. Da mesma forma que muita gente já anda ressentida pela falta de privacidade, quando não tem sofrido verdadeiros atentados criminosos, através da facilidade trazida com as redes sociais. Essa mesma que nos facilitou contatos, mas que ao mesmo tempo nos expôs desmedidamente.

Estou ciente de que se trata de uma tecnologia que veio para ficar. No entanto, assim como para todos que nos antecederam na aventura civilizatória, trata-se de uma ferramenta, sofisticada, mas instrumento auxiliar, acessório, não essencial. Vital, insubstituível é o nosso cérebro, que levou milênios para nos garantir a inteligência que temos.

Educadores, pedagogos, administrações públicas ao redor do planeta já se deram conta: o celular é um entrave poderoso na educação. Estão recomendando a retirada das salas de aula, e mesmo proibindo o seu uso no ambiente escolar. Desligar o celular, antes que a internet nos desligue. Já está atestado pelos estudos comportamentais recentes: ela se torna um vício, formando adictos que precisam de tratamento para recuperação.

Há, entre os especialistas em pedagogia, aqueles que ainda acham interessante apropriar os conteúdos programáticos da escola com esta tecnologia, já que os alunos não largam o celular. No entanto, está cada vez mais evidente (através de estudos sérios): melhor não!

A tecnologia pode ter se modernizado, mas o nosso cérebro ainda é formado como o de Arquimedes de Siracusa, aprimorado por inúmeros métodos depois disso. Isso significa que aprender ainda é usar os neurônios da melhor forma possível, a partir da observação. Tudo que afasta o aluno deste projeto agrega pouco, alimenta de forma não substancial, apenas acessória e descartável.

Do mesmo modo, no ambiente social, interfere nas relações interpessoais, com todo o engodo da vida digital. Por isso é importante, enquanto é tempo, lutar contra a perda de memória, contra a perda de verdade, lutar contra a perda de identidade, contra a cultura do ódio e do cancelamento, e a favor da paz.

Os ministérios da saúde e da cultura deveriam criar um aviso: use o celular com moderação. E as grandes corporações e as administrações públicas deveria buscar um acordo para regulamentar o seu uso. Antes que a Inteligência Artificial retire toda a naturalidade que há em nossa mente.

(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela “Da noite para o dia”.

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10 Comentários

  1. Academia se afastou da realidade. Produz uma classe media (a esquerda e direita) pouco letrada (que não tem noção que é) que se acha altamente capacitada e com respostas para todos os problemas. Erradas porque desconsideram os fatos. Muito Platão, pouco Aristoteles. É uma superbolha narcisista.

  2. Resumo da opera é a evidencia de outros problemas. Regulamentação significa inutilidade ou engessamento. Hipoteses não imaginadas na normas leva ao ‘jeitinho’, ao desvio, a inocuidade. Nas imaginadas impede o avanço. Por tras de historia toda uma ‘engenharia social’, vamos transformar a sociedade na utopia. O que acarreta prejuizos e desperdicio de recursos.

  3. ‘E as grandes corporações e as administrações públicas deveria (sic) buscar um acordo para regulamentar o seu uso.’ Sim, a solução de todos os problemas vem dos burocratas. O problema é o mesmo do STF, Juvenal há quase dois mil anos, ‘Quis custodiet ipsos custodes?’ A solução facil e simples (geralmente errada) para um problema complexo.

  4. ‘Por isso é importante, enquanto é tempo, lutar contra a perda de memória, contra a perda de verdade, lutar contra a perda de identidade, contra a cultura do ódio e do cancelamento, e a favor da paz.’ Kuakuakuakuakua! Sério? Que coisa mais ‘fofa’! Kuakuakuakuakua! Partiu combater conceitos abstratos e relativos! Kuakuakuakuakua! Entra no mesmo patamar de ‘dever civico de combater a dengue’. Kuakuakuakuakua!

  5. ‘[…] mas o nosso cérebro ainda é formado como o de Arquimedes de Siracusa […]’. Não há como afirmar isto, o cerebro do grego não foi examinado. Alem disto cerebros são diferentes.

  6. ‘Educadores, pedagogos, administrações públicas ao redor do planeta já se deram conta: o celular é um entrave […]’. Obvio que não. Motivo é simples, o modelo de aula expositiva não é adotado em todo lugar. Alas, existe um papo que os jesuítas tinham a ideia da jarra cheia do professor enchendo a cabeça vazia dos(as) alunos(as). Não lembro se eram os jesuitas mesmo, ou se a historia é veridica. Importa é que existe a recomendação para não adotar este paradigma, porém é o mais adotado no pais. Alas, em alguns lugares ja existe tela em sala de aula com inteligencia artificial. https://www.youtube.com/watch?v=7CaXE1vhWCE

  7. ‘Estou ciente de que se trata de uma tecnologia que veio para ficar.’ Eventualmente vai ser substituida. Pelo quê não se sabe ainda.

  8. ‘[…] a memória, essa em nossa mente, formada por nossos neurônios, vai perdendo função pelo desuso.’ Vai perdendo com a idade também. Neuronios morrem.

  9. ‘Tenho resistido, quanto posso, em consultar o Google para tentar lembrar de qualquer coisa.’ Uma bela desculpa para ficar inventando lorota.

  10. A Arquimedes é atribuida a invenção do parafuso que leva seu nome. Maioria ve cotidianamente. Ele tem inumeras contribuições, inclusive na matematica. Muitos trabalhos não sobreviveram, sabe-se da existencia por citações de terceiros. Acabou morto por motivo futil por um soldado de uma força invasora de sua cidade.

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