Sistema contra as cheias de Porto Alegre é velho, mas funcionava. Precisa ser consertado – por Carlos Wagner
“Recado que as enchentes nos últimos nove meses deixa é que o jogo mudou”
É real a possibilidade de que a próxima chuva forte alague Porto Alegre. Já aconteceu na chuvarada de mais de 100 milímetros que caiu na cidade na quinta-feira, 23 de maio. Na ocasião, a população já comemorava o recuo das águas do Lago Guaíba, que tinha invadido vários bairros no início de maio, quando aconteceu a terceira grande enchente nos últimos noves meses no Rio Grande do Sul, deixando, no somatório, um saldo de 214 mortes e bilhões de reais em prejuízos na infraestrutura (estradas, pontes, moradias, fábricas e prédios públicos).
Por ser a capital do Estado e concentrar as principais estruturas administrativas públicas empresariais gaúchas, além dos maiores hospitais e do Aeroporto Internacional Salgado Filho, a volta de Porto Alegre à normalidade é importante. Ainda mais que a maioria das sedes dessas estruturas administrativas, incluindo o aeroporto e Estação Rodoviária, estão localizadas em áreas que não eram invadidas pelas águas havia 83 anos, desde a grande enchente de 1941, quando o Guaíba subiu 4,76 metros.
Graças a um sistema contra as cheias que foi construído no início dos anos 70, depois de outra enchente catastrófica, em 1967, que se estende por 68 quilômetros e é formado por diques, o Muro da Mauá (uma parede de 3 metros de altura com 2,6 quilômetros de extensão e 14 comportas que são fechadas na subida das águas, e protege a área central da cidade) e 23 estações de bombeamento de água.
O sistema funciona assim: os diques e as comportas da Mauá mantêm as águas do Guaíba fora da cidade. E as casas de bombeamento mandam as águas das chuvas para o lago pelo esgoto pluvial.
No início de maio, o Guaíba subiu 5,61 metros e colapsou o sistema contra as cheias que, por falta de manutenção, não resistiu ao excesso de chuva. As barrentas águas do Guaíba invadiram o Centro Histórico, vários bairros, a rodoviária e o aeroporto. No final da primeira semana de alagamentos, as águas começaram a recuar do leito de ruas e avenidas.
Foi por pouco tempo. A chuvarada do dia 23 inundou novamente essas áreas, além de regiões que até então haviam sido poupadas. O motivo principal foi porque apenas 11 das 23 casas de bombeamento estavam funcionando. Sendo que mais da metade em estado precário. Lembro aos leitores e colegas jornalistas que dentro de três semanas e alguns dias, em 22 de junho, começa o inverno, e em seguida a primavera, as duas estações do ano em que o frio, os ventos e as chuvas são mais abundantes no território gaúcho.
Portanto, se as estações de bombeamento e as comportas do Muro da Mauá não estiverem consertadas e funcionando, o que aconteceu na quinta-feira (23) tem chance real de se repetir. O atual foco da discussão nos noticiários e nos gabinetes dos governos (municipal, federal e estadual) tem como prioridade a revitalização, através da atualização técnica de projetos já existentes, a ampliação e a modernização do sistema contra as cheias da Capital.
O foco na modernização do sistema é questão de lógica, porque ele é velho e desatualizado. Mas se a estrutura já existente não for consertada imediatamente as águas voltarão a invadir a cidade. É simples assim. A atualização do sistema precisa ser feita. Mas ela leva tempo. E tempo é tudo que não temos agora. O quadro é dramático na Capital. Vários bairros continuam alagados. A Estação Rodoviária e o Salgado Filho não estão funcionando. Entrar e sair de Porto Alegre tornou-se uma operação complicadíssima.
Partes do Centro Histórico ainda estão alagadas. Aqui duas lembranças que considero importantes: boa parte dos moradores dessa parte da cidade são pessoas idosas que vivem sozinhas. Moram ali desde os tempos em que o bairro era o principal endereço das pessoas ricas do Rio Grande do Sul. Já fiz reportagens sobre isso. Muitas vezes esses idosos morrem solitariamente e sua morte só é notada pelos vizinhos quando o cheiro da putrefação invade o andar.
O segundo motivo que é a região concentra uma significativa parte do comércio de rua, lojas fora dos shopping. Além do icônico Mercado Público, que funciona ali desde 1864. A maior parte do volume de água que está alagando Porto Alegre ainda é da enchente no início de maio, que atingiu 340 dos 497 municípios gaúchos e matou 163 pessoas, sendo que 72 continuam desaparecidas. A chuva do dia 23 potencializou esse alagamento.
Tenho andado pelas ruas e avenidas da cidade e a lembrança que me vem é a que vivi em Huambo, cidade de Angola, durante a Guerra Civil (1975 a 2002). Os motivos da guerra estão disponíveis na internet. Vou falar do que vi. Cheguei à cidade uma semana depois que ela tinha sido bombardeada e palco de combates na área urbana.
Nas ruas se encontravam eletrodomésticos, malas de roupas e veículos perfurados por tiros de metralhadoras de grosso calibre. Incluindo uma ambulância atirada em cima de uma casa por uma bomba jogada de um avião. Lembro-me que o chão das ruas estava coberto por cápsulas disparadas pelas armas.
Nas ruas e avenidas da Capital gaúcha, o lixo é formado por utensílios domésticos e outros pertences dos moradores destruídos pelas cheias. Já vi muitas ruas e avenidas alagadas durante a minha vida de repórter. Mas nada se compara com a devastação atual, que deixa um recado: a próxima pode ser pior.
Para arrematar a nossa conversa. Como repórteres ficamos atentos ao trabalho dos pesquisadores, às conversas dos governantes dentro dos gabinetes, dos parlamentares entre as quatro paredes das casas legislativas, e ouvimos com a atenção o relato das vítimas das enchentes. Cruzamos as informações recolhidas das conversas e montamos as nossas matérias.
É assim que o jornalismo é feito desde que se escrevia os textos molhando uma pena em um tinteiro. O nosso trabalho nos dias atuais foi muito facilitado pelas novas tecnologias de comunicação, que nos dão acesso a uma enormidade de informações. Só uma coisa não mudou em todo esse tempo. O repórter precisa saber ouvir e entender o que as pessoas envolvidas com o problema estão dizendo, ou fazendo.
Não é uma tarefa fácil. Por exemplo, por muitos e muitos anos os atingidos pelas enchentes sabiam que, depois que água baixasse, era só voltar para casa, salvar o que fosse possível e tocar a vida. Com a certeza que no próximo ano haveria uma nova cheia e o ritual se repetiria. O recado que as três enchentes nos últimos nove meses deixam para os gaúchos é que o jogo mudou. O próximo ano pode ser a próxima semana. Portanto, é urgente consertar o sistema contra as cheias da Capital.
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(*) O texto acima, reproduzido com autorização do autor, foi publicado originalmente no blog “Histórias Mal Contadas”, do jornalista Carlos Wagner.
SOBRE O AUTOR: Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo, pela UFRGS. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 73 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.
Esta semana estava passando perto da Catedral ali no centro. Um senhor de idade contava para outra pessoa algo como ‘aquela parte lá (e apontou para um lugar na serra) caiu em 41’. Donde surgiu a curiosidade, POA ficou debaixo d’agua e aqui, não choveu tanto? Alas, qual o pior ‘causo’ climatico do municipio?
Busilis é que do jeito que as coisas estão pode ser que não leve 80 anos para outra enchente deste tamanho. Pode ser que leve 10 ou pode ser que leve 5. Entramos no La Niña, pode ser que se repita ou pode El Niño voltar logo em seguida.
É de se esperar que o conserto e aperfeiçoamento do sistema contra cheias da capital demore. Andaram derrubando comportas, necessario ver se o que foi arrancado tem arrumação no proprio local ou se é necessario dispositivo novo. Alas, vedação contra agua não é algo simples de fazer. Alem disto com grande probabilidade serão necessarias obras integradas em outros municipios.
Quem tem que abrir a ‘caixa preta’ do sistema de proteção contra cheias de POA são os tecnicos. Alas, já ouvi dizer que as estações de bombeamento funcionam para uma chuva normal, no caso de uma enchente de grandes proporções talvez não dessem conta.
‘Funcionava’ até a pagina 2. Ano passado agua chegou na Avenida Mauá.
‘[…] lembrança que me vem é a que vivi em Huambo, cidade de Angola, durante a Guerra Civil (1975 a 2002).’ Sim, todo mundo interessado neste assunto. Tudo a ver. Alas, autor, como muitos, deveria escrever sua autobiografia. Garanto que será best seller.