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O sofrimento dos porcos e as muitas histórias da tragédia gaúcha que ficaram fora dos jornais – por Carlos Wagner

“Algumas precisam ser resgatadas, e uma é a do transporte de cargas vivas”

Imprensa acertou no atacado na cobertura da tragédia gaúcha, mas deixou a desejar nos detalhes (Foto Reprodução)

As três enchentes catastróficas que no intervalo de apenas nove meses atingiram o Rio Grande do Sul não deixaram apenas um rastro de mortes (214), desaparecidos (40), feridos (centenas) e destruição de lavouras, comércio, indústrias e infraestrutura (estradas, pontes e prédios). Também deixaram fora das páginas dos jornais e noticiários muitas histórias que mereciam ter sido publicadas.

Dei-me conta dessa realidade na noite de domingo (9/6), quando fiquei retido em um engarrafamento na BR-386, consequência dos danos causados pelas últimas enchentes à ponte sobre o Rio Taquari, em Lajeado. Por conta dos danos na ponte, o trânsito acontecia em meia pista.

A história é a seguinte. Voltava de Garruchos, cidade na fronteira gaúcha com a Argentina, e já estava no engarrafamento havia uma hora e meia, quando comecei a ouvir guinchos de porcos vindos de um caminhão que transportava os animais para um frigorífico.

Com o passar do tempo, os guinchos se transformaram em gritos longos e agudos, o que significava que os porcos estavam incomodados pela longa permanência na carroceria, onde são alojados em pequenos espaços. Os gritos dos porcos me fizeram lembrar que o transporte de animais para o abate é planejado para ser o mais rápido possível. E que as horas extras que um caminhão com carga viva fica preso em um engarrafamento resulta em sofrimento para esses animais, que têm o seu bem-estar garantido por leis.

Sei disso porque consultei veterinários sobre o que vi e ouvi. Por aquele trecho da BR-386 transitam diariamente dezenas de caminhões transportando suínos e frangos que abastecem as agroindústrias espalhadas pelo Vale do Taquari, região formada por 36 municípios, sendo Lajeado o seu centro industrial e comercial.

O vale foi duramente atingido pelas três enchentes. As águas da mais recente começaram a baixar há duas semanas. E, com isso, o volume de tráfego rodoviário na região aumentou, causando imensos congestionamentos nas estradas e pontes ainda em condições precárias devido os estragos provocados pela força da água.

A principal rodovia é a BR-386, que liga Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre, a Iraí, na divisa com o oeste da Santa Catarina, numa extensão de 550 quilômetros. O trecho da 386 que corta o Vale do Taquari é pedagiado, sob concessão da CCR ViaSul. São 300 quilômetros entre Canoas e Carazinho. Na altura de Lajeado existe um posto da Polícia Rodoviária Federal (PRF).

Outra via importante é a ERS-129, que liga Lajeado a Serafina Correa. É administrada pelo Daer, uma autarquia do governo gaúcho responsável pela administração das rodovias estaduais, e tem um posto da Polícia Rodoviária Estadual.

Além disso, existem os pedágios. Toda essa estrutura poderia ter sido acionada para montar um plano especial com o objetivo de organizar o trânsito de caminhões com carga viva. Por que não foi? Simples, a imprensa não tocou no assunto.

No Brasil, o transporte de carga viva é um caos. Em fevereiro, um navio saindo dos portos brasileiros atracou na Cidade do Cabo, África do Sul, levando 19 mil cabeças de gado vivo para o Kuwait. O mau cheiro e a deterioração da saúde dos animais virou notícia mundial – há matérias na internet. No final de abril, publiquei o post A imprensa precisa explicar melhor a morte sofrida do cachorro Joca num avião da Gol. Claro, o caso do Joca virou manchete em vários países.

Em Porto Alegre, na quarta-feira (12), a delegada Samieh Saleh, da Delegacia do Meio Ambiente, da Polícia Civil, indiciou por crime ambiental as empresas Cobasi (duas lojas) e Bicharada pela morte de 175 animais (roedores, aves e peixes) em suas instalações na enchente de maio. Os responsáveis pelas lojas optaram por salvar os equipamentos, deixado os animais abandonados à própria sorte. As duas empresas negam ter abandonado os animais e emitiram notas se defendendo – há um farto material na internet.

O inquérito policial recém começou a sua caminhada rumo ao Poder Judiciário, onde pode ser aceito ou não. Se o indiciamento for aceito, ele se transforma em processo e começa a andar na Justiça. Caso contrário, pode ser arquivado. A presença da organização não governamental (ONG) Princípio Animal no caso é uma garantia de que a história não cairá no esquecimento.

Mesmo antes de saber qual será o destino dos indiciamentos feitos pela delegada Samieh já existe uma movimentação nos bastidores a respeito da necessidade das empresas envolvidas com o comércio de animais organizarem um programa de treinamento para os seus funcionários agirem em situações de emergência.

Lembro que depois da devastação deixada pelas três enchentes, o comércio, a indústria e o Estado terão que rever todos os seus procedimentos de emergência. Porque os estragos causados por esses eventos mostraram que as mudanças climáticas são o novo normal.

No atacado, a cobertura da imprensa da tragédia gaúcha foi boa. Mas deixou para trás algumas histórias que precisam ser resgatadas, e uma delas é o caso do transporte de cargas vivas no meio de engarrafamentos de trânsito. Outra é uma história contada por uma agricultora que foi entrevistada na frente dos escombros da sua propriedade. Ela lembrou da vaca de leite da família que havia desaparecido com a enxurrada.

Na ocasião, lembrei-me que os agricultores das pequenas propriedades do Vale do Taquari criam suínos, gado leiteiro e galinhas em parceria com as agroindústrias. Mas também têm o que chamam de “criação”: porcos, galinhas e vacas leiteiras que fornecem carne, ovos e leite exclusivamente para a família. É comum ver um agricultor apontar o dedo em direção a uma vaca e dizer: “Ela alimentou os meus filhos”. Estes animais ganham nomes, principalmente as vacas leiteiras.

Há alguns anos estava envolvido na cobertura de um episódio de febra aftosa, doença altamente contagiosa que ataca o gado e é causada por um vírus, no rebanho em Joia, pequena cidade agrícola no interior do gaúcho. Os fiscais da Secretaria da Agricultura agrupavam os animais contaminados em lotes e os soldados da Brigada Militar (BM) atiravam na cabeça. Era o chamado “rifle sanitário”. E depois enterravam as carcaças em uma vala comum.

Os agricultores escondiam no mato a vaca leiteira da família para escapar do “rifle sanitário”. O que aconteceu no Rio Grande do Sul entrou para a história. Portanto, não podemos deixar nenhum detalhe para trás. Ele pode ser um elo importante para contar a história das três enchentes. E pode nos ajudar a saber o motivo pelo qual os porcos gritavam na carroceria de um caminhão no engarrafamento da BR-386.

PARA LER NO ORIGINAL, CLIQUE AQUI.

(*) O texto acima, reproduzido com autorização do autor, foi publicado originalmente no blog “Histórias Mal Contadas”, do jornalista Carlos Wagner.

SOBRE O AUTOR:  Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo, pela UFRGS. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 73 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.

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