Narrativas – Por Orlando Fonseca
Talvez o maior efeito da opção pela ignorância seja a tentativa de apagamento do passado, especialmente (em se tratando de cidadania), passado histórico. É muito comum nesses casos, que se construam narrativas para justificar o injustificável – como o fazia a civilização em sua infância, construindo “mitos” – em flagrante mistificação dos fatos, das ideias e dos agentes públicos. Os que hoje sentem saudade de um período ditatorial no país e clamam pela volta dos militares ao poder, negam a face mais obscura desse regime, que tantos estragos fez aos brasileiros (até mesmo para os que não acham que foi assim). No entanto, a fim de que se possa refrescar a memória, basta buscar as informações que estão à disposição nos livros e, hoje, nos arquivos digitalizados de jornais, na internet. Aos que não acham que houve um período de dura realidade em nosso país, trago aqui o depoimento de ninguém menos do que o General Ernesto Geisel, em seu último pronunciamento anual à nação, em 30 de dezembro de 1978. Via Embratel, ele ocupou rádios e televisão para fazer um longo discurso no qual declara o “término de todo um longo período autoritário de exceção” (palavras dele).
Geisel foi o presidente da chamada distensão “lenta e gradual”, por isso a menção de um “longo período”. No rodízio presidencial de generais, iniciou seu mandato em 1974, já com dez anos de ditadura, e levou mais cinco para pôr em prática a sua missão de devolver o Brasil à normalidade democrática. Em seu discurso faz um balanço daquele ano, mas basta confrontar a sua fala com a realidade, para perceber o modo como a pílula estava sendo dourada. É evidente que os efeitos mais graves e trágicos da exceção foi para com os opositores do regime e para com os trabalhadores. O seu pronunciamento (que pode ser encontrado nos arquivos do Jornal do Brasil, na internet) precede o fim do abjeto Ato Institucional número 5 (o famigerado AI 5), a partir do primeiro dia de 1979. E isso não foi um gesto magnânimo de Geisel; quem passou por aquela quadra tenebrosa do final dos anos 70 sabe o quanto custou à população atenta ter enfrentado a polícia em ruas e praças pedindo a anistia, o fim da censura e eleições para presidente. A quem pensa que o governo que saía (março de 1979), dando lugar a João Figueiredo, apresentava números positivos da economia, para tirar essas dúvidas, basta prestar atenção ao que exorta Geisel: “a sociedade brasileira não pode, nem deve tolerar permanentemente altas anuais dos preços da ordem de 40%”. Particularmente, não tenho saudade nenhuma daquele período político, a não ser pela força do apelo popular pela volta da democracia.
Dentre os vários danos colaterais da aventura comandada por esse cidadão, que tinha o propósito de livrar o Brasil do “perigo comunista”, podemos elencar: o aumento da dívida externa, o empobrecimento da classe trabalhadora, o atraso em relação ao avanço científico no mundo, mudanças equivocadas na educação, tanto de base quanto do ensino superior. Isso sem falar nas suspeitas de que verbas públicas foram parar em contas cifradas na Suíça e em outros paraísos fiscais. Mas a que mais me parece deletéria foi a censura aos meios culturais, tanto de livros quanto de peças teatrais e músicas. Várias publicações, após o retorno do regime democrático, documentam o quanto a arte e a cultura sofreram nas mãos de ineptos censores, sem as mínimas condições para discernir o que estavam proibindo. Por isso a minha preocupação em registrar a disposição de se começar a construção de narrativas positivas (não simplesmente otimistas), baseadas na realidade dos fatos, nos registros históricos e na lucidez da verdade científica. Porque os que usurpam o poder, em sua primeira medida autoritária, calam a voz dos que usam a realidade como referência, e começam a construir a sua versão. Eles sabem quantos e quem são os que preferem a mistificação no lugar da reflexão consciente.
(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela “Da noite para o dia”.
Ótimo texto e abordagem. Tudo que tá ruim sempre pode piorar ainda mais. Se não se aprende com os erros do passado, eles podem se repetir. E gente burra, conduzidos pelos “endinheirados”, quase nos colocaram nas portas do inferno da extrema direita golpista.
Resumo da opera. Nacional desenvolvimentismo já deu com os burros n’agua tres vezes por aqui. A ultima no governo Dilma, a humilde e capaz. Quebrou o pais. Se a gastança desenfreada e sem criterio continuar vai acabar em algo parecido. Culpa vai ser dos outros. Como sempre. O resto é cortina de fumaça. Coisa de gente que só se preocupa com eleições, o estado das coisas é secundario.
‘Ameaça do comunismo’ agora virou ‘ameaça a democracia’. Narrativas.
No caso cabe bem o dito ‘quem gosta de passado é museu’. Aquela conversa de velho, ‘no meu tempo ….’.