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Setembro: angústias e preocupações (Parte 3) – por José Renato Ferraz da Silveira

“Os delinquentes...; as crianças negras...; e a situação de pretos e pardos?...”

“O que mais falta hoje é dar um sentido para a vida das pessoas. No passado as sociedades eram guiadas por um princípio unificador: a religião outrora, a política em seguida, depois a economia. Não é mais o caso nas sociedades de hoje”. (Alain Touraine)

O início da República conviveu com crises econômicas, marcadas por inflação, desemprego e superprodução de café. Aliado a isso, havia muita concentração de terras nas mãos de poucos e à ausência de um sistema escolar abrangente.

(Como disse na parte 2): “Quanto aos recém-libertos, estes viviam em um estado de quase completo abandono: os sofrimentos da pobreza, os preconceitos cristalizados em instituições e leis. Eram subcidadãos, elementos sem direito à voz na sociedade brasileira”.

Concomitante a esta realidade dramática, a ciência europeia da época servia como critério definidor das sociedades civilizadas. Era marcada por visões racistas, na qual os brancos ocupavam o primeiro lugar do desenvolvimento humano, e os pretos, o último.

Os delinquentes

Os historiadores Mary Del Priore e Renato Pinto Venâncio afirmam que “a importância desse ideário tinha objetivos claros: após o 13 de maio deixava de existir a instituição que definia quem era pobre e rico, preto e branco, na sociedade brasileira. O racismo emergia assim como uma forma de controle, uma maneira de definir os papéis sociais e de reenquadrar, após a abolição da escravidão, os segmentos da população não identificados à tradição europeia”.

Ressalte-se que a criminologia da Belle Époque rompe com a tradição jurídica inaugurada no século XVIII, que tinha como princípio à igualdade dos homens perante os delitos e penas, considerando a partir de agora os delinquentes quase um gênero humano singular, uma manifestação de formas biológicas inferiores.

Daí a necessidade – para alguns – de criar legislações especificas, de acordo com as “raças”.

Esta perspectiva perversa – de ver pardos e pretos como criminosos em potencial – levou à ampliação dos poderes da polícia e à edificação de penitenciárias públicas, muito mais rigorosas do que as instituições repressivas do Império aos crimes cometidos por descendentes de africanos.

As crianças negras

Nem mesmo as crianças escaparam ao preconceito. No fim do século XIX, as instituições de caridade brasileiras registravam um crescimento vertiginoso do abandono de meninos e meninas pretas. Foi também o período que deu início à mudança do status jurídico da infância carente. Ou seja, se até então os meninos e as meninas sem família eram vistos como anjinhos a serem socorridos por instituições misericordiosas, eles passam agora a ser encarados como “menores abandonados”, membros mirins das “classes perigosas”, que deveriam ser isolados do convívio social, em asilos destinados a esse fim. A política racista também se desdobrou em outros mecanismos de controle e punição.

A “era do bota abaixo”

A “era do bota abaixo” – projetos de reurbanização nas principais cidades brasileiras – desalojou milhares de famílias pobres (a maior parte de pretos e pardos), expulsando-as das áreas centrais, onde habitavam cortiços, para locais de difícil edificação. Dessa maneira, a mesma cidade que procurava se embelezar era também a mesma que inventava a favela, termo que nasce na época.

Capoeira e a culinária dos antigos escravos

O racismo dos tempos iniciais da República voltou-se também ao combate as tradições culturais africanas: a capoeira, bem como outras formas de religiosidade. O código penal de 1890 criminalizava a capoeira. Até a culinária dos antigos escravos sofria severa condenação médica. Não podemos ignorar que médicos – higienistas – ligados as correntes do darwinismo social – defendiam a noção de sobrevivência do mais forte, chegando mesmo a ver na pobreza um elemento purificador da sociedade brasileira, na medida em que eliminaria os elementos racialmente tidos como inferiores, ou seja, aqueles egressos do cativeiro.

Muito tempo se passou e a situação dos pretos e pardos?

Muito tempo se passou, e na atualidade, dados do IBGE- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística mostram que 54% da população brasileira é preta.

A pesquisa “A Dimensão Social das Desigualdades”, do sociólogo Carlos Costa Ribeiro, encontrou uma escala de desigualdades que acompanha de forma contínua o escurecimento da cor da pele.

Constata no estudo que quanto “mais escura a cor da pele, menos renda, menos educação, menos oportunidades”.

O inverso também é verdadeiro: “quanto mais clara a cor da pele, mais renda, mais educação, mais oportunidades”.

“Para além da diferença aguda entre os pontos mais extremos da desigualdade na estratificada sociedade brasileira – na ponta mais alta, homem, branco, urbano e rico; na mais baixa, mulher, preta, rural e pobre”, afirma Ribeiro.

Pretos e pardos no mercado de trabalho

De acordo com reportagem da CNN Brasil, pretos e pardos correspondem a maioria da população (54,2%) ocupada em 2022.

Apesar disso, pretos e pardos, tiveram rendimentos menores em comparação aos trabalhadores brancos, que ocupam a fatia de 44,7% do mercado de trabalho. Ainda segundo a matéria, “ao observar o rendimento médio real, a disparidade é ainda maior. Os brancos (R$ 3273) ganharam 64,2% a mais que pretos e pardos (R$1994) no período avaliado”.

Outro dado é que por nível de instrução, “a maior disparidade do rendimento-hora estava no nível superior completo, R$ 35,30 para brancos e R$ 25,70 para pretos ou pardos, diferença de 37,6%”.

E daí, caro leitor?

Resumo da ópera

A “República brasileira” (quase 135 anos) com suas contradições internas (é um dos países com maior desigualdade de renda do mundo), uma classe política parasitária e oligárquica representada pelos inúmeros partidos (29) que se digladiam com uma sede insaciável de poder e influência em benefício próprio. 

Um povo iletrado (11,4 milhões de pessoas de analfabetos) e bastante manipulável aos discursos sedutores dos “salvadores da pátria”, dos “homens providenciais”, do “mito”, da “alma mais honesta e das não tão honestas do país” e agora dos “coachs e influencers”. 

O Brasil segue adiante com suas mazelas (saúde e educação pública deficitárias, taxas de criminalidade altíssimas e o mix destilado de pobreza, racismo e desnutrição infantil). Somado a isso, o Brasil está diante de diversos e enormes desafios do século XXI (Infraestrutura, Ambiente de Negócios, Competitividade, Carga tributária, Ciência e Tecnologia).  

Constata-se que faltam projetos de Nação de curto, médio e longo prazo para um país cada vez mais:

a) Envelhecido (maior expectativa de vida do brasileiro e menor taxa de natalidade de acordo com o censo 2022);

b) Feminino (de acordo com o censo de 2022, 51,5% da população são mulheres);

c) Racista (segundo uma pesquisa do PoderData, 76% dos brasileiros consideram que existe racismo no país);

d) Misógino (em 2022, 1.400 mulheres foram mortas no Brasil pelo fato de serem mulheres, o maior número registrado desde 2015);

e) Homofóbico (em 2022, foram registradas 488 ocorrências de homofobia ou transfobia, o que representa um aumento de 54% em relação a 2021)

f) Preconceituoso (social, raça e cor, gênero e religioso)

g) Polarizado (uma pesquisa realizada pela Quaest aponta que 41% dos brasileiros gostariam de mudar de país por causa da polarização política), amargo, raivoso, ressentido, belicoso, desunido, xenófobo e cada vez mais sem direção.

Nota final: o Brasil pegando fogo

Cresceu o número de focos de incêndio (165 mil focos de fogo registrados por satélite, 82% deles na Amazônia e no cerrado), até agora, em 2024.

Aqui no Rio Grande do Sul ainda estamos sofrendo com o impacto da tragédia das enchentes (o governo gaúcho classificou a situação como a maior “catástrofe climática” da história do estado). Lembrando que foram cerca de 2,4 milhões de pessoas afetadas pelos efeitos da chuva nas regiões Central, dos Vales, Serra e Metropolitana de Porto Alegre.

Enfim, o que está fazendo o Congresso Nacional?

Discutindo a sucessão de Lira e a anistia aos baderneiros do 8 de janeiro!

Não podemos esquecer e ignorar que a questão climática é assunto de governo, é assunto do Congresso! (boa parte do Congresso resiste as propostas de prevenção dos efeitos da mudança climática por questões ideológicas).

Por fim, a questão climática importa decisivamente para todos, todos nós! (a conta de luz, o preço do arroz, o preço do feijão e etc).

O que pensa o leitor?

Informações complementares:

Mary Del Priore e Renato Pinto Vasconcelos. O livro de ouro da História do Brasil.

Estudo: 70% da população carcerária no Brasil é negra

Estudo: 70% da população carcerária no Brasil é negra | Radioagência Nacional (ebc.com.br)

Negros são maioria dos mortos em ações policiais

https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-11/negros-sao-maioria-dos-mortos-em-acoes-policiais

Base de dados – Pesquisa Dimensões Sociais da Desigualdade (PDSD)

https://centrodametropole.fflch.usp.br/pt-br/noticia/base-de-dados-pesquisa-dimensoes-sociais-da-desigualdade-pdsd

Censo 2022

https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/22827-censo-demografico-2022.html

Negros e pardos são maioria no mercado de trabalho, mas rendimentos de brancos são 61,4% maiores, aponta IBGE

(*) José Renato Ferraz da Silveira, que escreve às terças-feiras no site, é professor Associado IV da Universidade Federal de Santa Maria, lotado no Departamento de Economia e Relações Internacionais. É Graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP e em História pela Ulbra. Mestre e Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP.

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25 Comentários

  1. Novamente, excelente texto do Prof. Silveira. Imagino que as palavras irritem os mascarados que se escondem em seus sofismas. Há muito tempo a perder, quando não se trabalha e não se estuda. Haja vista, a grande quantidade de jubilados nas universidades públicas e pessoas que, não se sabe como, se sustentam. Muitas vezes, exploram os idosos genitores.

  2. Resumo da opera III. Envelhecimento não tem solução. Racismo, misoginia e preconceito são importantes. Mas estão atras de saúde, educação e segurança na fila. Até porque no estado que estão estes tres setores ‘ferram’ com todos, indiscriminadamente. Sem falar nas cortinas de fumaça.

  3. Resumo da ópera II, a missão. Pais está uma esculhambação. Sempre foi, pelo menos desde 22 de abril de 1500. Piorou. Estagnado. Decadente. Parece o trairão que vem dormir na beirada do açude no inverno e acaba levando um costado de facão na cabeça. Inteligencia artificial, biotecnologia, etc.

  4. Resumo da ópera. Os Donos do Poder de Faoro. Desde 2013 o establishment está fazendo agua. CF88 esta na beirada do telhado, não é de hoje.

  5. ‘Mary Del Priore e Renato Pinto Vasconcelos. O livro de ouro da História do Brasil.’ Apelo a autoridade. Um livro só. Alguém checou o livro?

  6. Informações complementares são manipuladas. Uma hora somam pretos com pardos, noutra não somam. Depois agregam dados (CNN) escondendo os detalhes. Se a toda hora alguém, se achando muito ‘esperto’, tenta se utilizar de manipulação a longo prazo o ceticismo se instala. Simples assim.

  7. Pelo que vi de Bill Gates e outros. Mudança da matriz energetica vai ser lenta. Temperatura no planeta vai subir para a casa do chapéu. Alterada a matriz vai ser necessario tirar carbono da atmosfera. Por que não fazem mais rapido como desejam alguns? Porque só ocorreria no ‘ocidente’ o que resolve nada. Haveria convulsão social a torto e a direito e talvez algumas guerras civis. Então, como Maluf e Marta Suplicy disseram, é relaxar e gozar.

  8. ‘O que pensa o leitor?’ Penso que os cientistas erraram feio, mais de uma vez. Prometeram derretimento de polos decadas atras e não aconteceu. Depois fizeram previsões catastroficas para daqui um tempo mais e as catastrofes estão acontecendo agora.

  9. ‘Enfim, o que está fazendo o Congresso Nacional?’ Politica. Da ultima vez que observei fazer chover não é atribuição do Congresso.

  10. Pais esta envelhecendo. ‘Mais feminino’, mas o indice de natalidade diminui. Racismo não tem indice, achar todo mundo acha. Misogino, mais de 100 milhões de mulheres no pais. Homofobia, numero muito pequeno para usar estatistica. Preconceito é dificil de medir, não é possivel ler a mente das pessoas. Polarizado, quantos gostariam de mudar de pais por falta de organização e causas economicas? E só por ‘polarização’? Que existe em todo ocidente?

  11. ‘Constata-se que faltam projetos de Nação de curto, médio e longo prazo para um país cada vez mais:[…]’. Debates. Jornalista faz uma pergunta ‘o que o candidato tem de proposta para a sustentabilidade?’. Convite para uma resposta genérica. Teatro de má qualidade, ninguém assiste porque qualquer arigó, mesmo os ‘manipuláveis’, sabem que no dia seguinte a eleição nada mais vale. Como os planos de governo. Alas, ninguém fiscaliza, nem mesmo a imprensa. Para que perder tempo? Ouvir ‘propostas’ furadas? No curto prazo o que conta é a proxima eleição.

  12. ‘[…] bastante manipulável aos discursos sedutores […]’. Preconceito do primeiro ao quinto e invertido. Todo mundo pode sofrer manipulação. Conhecimento depende muito do contexto. Um médico no sistema judiciario é só mais um. Um advogado num hospital é só mais um. Ambos num leilão de gado, genética, sabem menos que qualquer peão (generalizando, medicos e advogados costuma ser criadores no sul).

  13. ‘[…] uma classe política parasitária e oligárquica representada pelos inúmeros partidos (29) que se digladiam com uma sede insaciável de poder e influência em benefício próprio.’ Sensação de muita gente, numero de partidos é diferente, na Ianquelandia e na Comunidade Europeia. Com a vantagem dos tupiniquins não terem que pagar contas de guerras.

  14. ‘E daí, caro leitor?’ Dai que ‘[…] reportagem da CNN Brasil, pretos e pardos correspondem a maioria da população (54,2%) ocupada em 2022’ contradiz o que foi apresentado como dados do IBGE anteriormente no texto. Dai que ‘[…] “ao observar o rendimento médio real, {…]” são numeros soltos, a diferença é para a mesma função com o mesmo tempo de serviço e mesma qualificação?

  15. As cotas foram criadas para corrigir as distorções. Copiaram dos Ianques. Obviamente fizeram ‘adaptações’, ou seja, implantaram como Deus fez a mandioca. Por lá não resolveu, já andaram recuando.

  16. ‘[…] mostram que 54% da população brasileira é preta.’ IBGE, informação oficial: 45% da população é parda; 43% é branca; 10% são pretos. Ideologicamente os vermelhos somam de acordo com a conveniencia, os fatos são irrelevantes.

  17. Oswaldo Cruz era higienista. Vital Brasil Pai era higienista. ‘[…] chegando mesmo a ver na pobreza um elemento purificador da sociedade brasileira,[…]’. Outra informação retirada de um orificio que não o bolso.

  18. ‘[…] projetos de reurbanização nas principais cidades brasileiras […]’. Georges-Eugène Haussmann tinha que ter tido alguma influencia por aqui. Reurbanização também significa obras e mais empregos.

  19. ‘[…] se até então os meninos e as meninas sem família eram vistos como anjinhos […]’. Informação tirada de um orificio que não é o bolso. Alas, generalização, outro truquezinho.

  20. ‘[…] as instituições de caridade brasileiras registravam um crescimento vertiginoso do abandono de meninos e meninas pretas.’ Quem abandonou?

  21. ‘[…] aos crimes cometidos por descendentes de africanos.’ Mendigagem, vadiagem são os exemplos mais citados. Trinta dias de cadeia. ‘Capoeiragem’, 6 meses de cadeia no maximo. Primeiro codigo penal da Republica traz condutas, não discrimina por ‘raça’. Documento é diponivel.

  22. ‘ O racismo emergia assim como uma forma de controle, […]’. Afirmação é uma conclusão posterior. Apresentada desta forma é teoria da conspiração. Parece que houve uma reunião e decidiram isto.

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