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A confirmação da cloroquina como falácia: ciência e responsabilidade – por Leonardo da Rocha Botega

"As ciências e a ética da responsabilidade devem andar sempre juntas"

O ano de 2024 pode ser definido como o ano da confirmação de que algumas falácias não passavam de falácias mesmos. A proposição de que um grupo de militares com histórico antidemocrático poderiam se converter à democracia, a hipócrita ideia da sensibilidade social do “mercado” e, por último, a defesa da cloroquina/hidroxicloroquina como tratamento para a Covid-19 foram alguns exemplos.

Todas estas falácias encontraram guarida no bolsonarismo e no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Todas tiveram (e tem) um custo social muito alto. A falácia que, objetivamente, gerou danos mais visíveis (se é que podemos mensurar), não apenas no Brasil, mas em várias partes do mundo, foi a defesa da cloroquina/hidroxicloroquina como tratamento para a Covid-19.

Tal ideia foi confirmada como falácia pela própria revista onde o estudo que a defendia foi publicado, a International Journal of Antimicrobial Agents (IJAA). O artigo foi retirado (“despublicado”), na última semana, pelo próprio IJAA. O periódico argumentou problemas éticos e metodológicos. O artigo havia sido publicado, em março de 2020, por um grupo de dez pesquisadores, entre esses Philippe Gauret e Didier Raoult, ambos ligados ao Hospital Institute of Marseille Meditarranean Infection (IHU).

Após sua publicação, Didier Raoult, então diretor do IHU, passou a ocupar significativos espaços nas mídias sociais e na televisão, divulgando o que propagava como a “cura da Covid-19”. Tudo isso em meio a pior pandemia mundial desde 1918. Raoult foi o grande responsável por popularizar o chamado “Kit Covid” que juntava a cloroquina/hidroxicloroquina com outros medicamentos como azitromicina, ivermectina e suplementos de zinco.

Desde de sua publicação, o artigo da equipe de Gauret e Raoult sofreu inúmeras contestações no campo cientifico, tanto do ponto de vista ético, quando do ponto de vista metodológico. Do ponto de vista ético, as principais contestações versavam sobre o curto prazo de análise do texto por parte da revista (quatro dias) e o fato de que um dos autores, Jean-Marc Rolain, era editor-chefe do periódico, o que configura conflito de interesses.

Do ponto de vista metodológico, os problemas eram mais graves. As miseras seis páginas do artigo traziam uma amostragem de apenas trinta e seis pacientes e ocultavam questões fundamentais. Entre estas, o fato de seis pacientes terem sido retirados do estudo, um por ter falecido e três por terem sido transferidos para o tratamento intensivo. O estudo também não tratava de forma diferenciada os diferentes grupos de pacientes, uma questão qualitativa básica para qualquer pesquisa.

Por conta destes questionamentos feitos pela comunidade científica, a Organização Mundial da Saúde (OMS) não recomendou o uso da cloroquina/hidroxicloroquina como tratamento para a Covid-19. Quem se entusiasmou com a proposta foi o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e alguns de seus principais discípulos como Jair Bolsonaro, que chegou a representar uma patética cena oferecendo uma caixa de cloroquina às Emas do Palácio do Alvorada.

Estados Unidos e Brasil estão entre os países onde boa parte dos médicos aderiram ao uso da cloroquina/hidroxicloroquina e do “Kit Covid”. Também estão entre os países com maior número de mortes por Covid-19. No Brasil foram mais de 700 mil vítimas. Nos Estados Unidos aproximadamente 1,1 milhão. Uma prova de que a falácia, o charlatanismo e o negacionismo custam muitas vidas. Um chamado ao cuidado e a responsabilidade cientifica.

Edgar Morin, em seu livro Ciência como consciência, chama atenção para o fato de que o cientista deve se sentir responsável com qualquer cidadão, “com aquela diferença que o faz justamente em alguma coisa que pode produzir vida e morte, sujeição ou libertação”. Philippe Gauret, Didier Raoult e os demais pesquisadores da equipe não tiveram esta responsabilidade. Trump, Bolsonaro e milhares de pseudocientistas, políticos, influenciadores e médicos também não.

Em outubro deste ano, Raoult teve seu registro profissional suspenso pela Ordem de Medicina da França por ferir o Código de Ética Médica com a promoção de tratamento de ineficácia comprovada. Os demais irresponsáveis também deveriam receber algum tipo de punição. A adesão a falácias não pode ser naturalizada. As ciências e a ética da responsabilidade devem andar sempre juntas, como condição fundamental para a preservação da própria humanidade.

(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve regularmente no site, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).

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